terça-feira, 23 de setembro de 2008

Recordando Soeiro Pereira Gomes - autor de "Esteiros" III

A 20 de Dezembro de 1979, na sessão realizada na Sociedade Nacional de Belas-Artes, relembrando a morte de Pereira Gomes (1949), disse Mário Dionísio: "Não sei, assim, evocar Pereira Gomes, sem evocar também toda uma época: a do surto do movimento neo-realista, movimento que, em lenta gestação desde 1934, no jornal «Liberdade» e noutros, se afirmava a partir de 1936 e 1937 em poemas, contos, crónicas, artigos de teorização e de polémica, e se consolidaria depois de 1939, sobretudo n'«O Diabo» e no «Sol Nascente»" (cit. em Ricciardi, p.58). O aparecimento de periódicos de esquerda foi uma das formas de combate à autoridade exagerada do Estado Novo. Foi uma das formas escolhidas pela intelectualidade portuguesa não só para divulgar estéticas novas, mas também para chamar a atenção para problemas antigos não resolvidos, como os da desigualdade social, da degradação que havia na exploração dos pobres pelos poderosos, do problema dos analfabetos, da pobreza... Pereira Gomes, nesta questão, deu o exemplo literário e deu o exemplo prático, tornando-se num modelo de homem interventivo e completo, que viu e sentiu o que descreveu nos seus contos e romances. Em Alhandra teve uma actividade importante pela integração e qualificação das pessoas: "os cursos de educação física, a construção da piscina no Alhandra Sporting Club, as palestras nas colectividades próximas, a organização de bibliotecas populares, os cursos de alfabetização para crianças e para adultos, os passeios, o campismo, a presença constante e discreta entre os operários da fábrica. E não menos importante, o trabalho pedagógico de convencer a juventude a afastar-se das tabernas e do jogo" (cit. idem, p.59). Da piscina, em particular, diz o próprio Pereira Gomes, em carta de 1938 a um amigo: "Durante três meses trabalhei como uma fera: arranjei dinheiro, dirigi os trabalhos e, tendo gasto apenas umas dezenas de contos, arranjei uma piscina para o club local e um esgotamento físico pra mim. Em todo o caso, produzi e fui útil para a colectividade." (cit. idem, p.60) Haverá talvez ainda alguns idosos que se lembram deste cidadão, que também deu aulas de ginástica à mocidade. E, depois do corpo, o espírito: "Bem-vindas sejam pois as bibliotecas até porque elas são inimigas da taberna. Mas, elas só não bastam, nem mesmo como paliativo, porque de nada servirão aos ignorantes, aos analfabetos. Permiti-me, portanto, que, fundador também de algumas bibliotecas populares - alvitre, [...] a criação de um curso nocturno de instrução primária para os sócios." (cit. idem, p.66) Isto escreveu Soeiro Pereira Gomes num texto duma palestra (Instrução, Desporto e Educação Física). As bibliotecas e os cursos funcionaram em Alhandra depois dos esforços dos cidadãos que apoiaram estas ideias. Baptista Pereira, atleta e campeão de nado alhandrense e, também, o Gineto de Esteiros, disse: "Quem me começou a ensinar a ler foi Soeiro Pereira Gomes, um homem extraordinário que viveu aqui em Alhandra." (cit. idem, p.67) Ainda houve espaço para a representação de revistas, musicadas por Manuela Reis, a inteligente esposa do escritor, que, pelo início dos anos '40 era uma prestigiada colaboradora da Emissora Nacional. Alhandra era assim um local um tanto melhor para se viver. E tudo o que era necessário, ontem como hoje, era vontade, imaginação e altruísmo. Agora que se recordam estes factos guardados pela História, seria bom ver as mais jovens gerações à altura dos seus antepassados.
Soeiro Pereira Gomes - Uma Biografia Literária, Giovanni Ricciardi, Caminho, 1999

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Leitura em Férias IV- "O Melhor dos Meus Erros"

Aproveito o post anterior, já que mencionei a autora Clara Pinto Correia, para destacar mais um livro da sua autoria. Desta vez trata-se de um conjunto de crónicas da altura em que colaborava com a revista Visão.
Após terminada a leitura de “O melhor dos meus erros”, fiquei com a sensação de que mais que ter lido um conjunto de crónicas, li um conjunto de reflexões (algumas profundas) sobre os mais variados temas. Mais do que uma simples e serena leitura, foi também para mim uma reflexão. Devido a opiniões divergentes, pensei e repensei, observando as duas faces da mesma moeda.
Estes “erros” recomendam-se.

Referência:
Clara Pinto Correia, “O melhor dos meus erros”, Oficina do Livro, Lisboa, 2003

Escrever uma Tese em Bom Português

Encontramo-nos no início de um novo ano lectivo. Terminam as férias, os passeios, o descanso e reiniciam-se as aulas, o estudo e os exames. Para alguns começa o estágio e já se preparam para escrever a Tese. É esta a minha deixa para sugestão de dois livros, que podem ser de particular utilidade nesta altura do percurso de formação de todos nós.
O primeiro livro trata, como o próprio título indica, sobre “Como escrever uma tese, monografia ou livro científico usando o Word”, dos autores Alexandre Pereira e Carlos Poupa. Acho este livro sugestivo não só por explicar as normas de redacção de uma tese (poupando trabalho ao orientador), como também por explicar tutorialmente, com recurso a texto e imagens, as várias formatações necessárias em word (notas, referências, índices remissivos, tabelas, figuras, quadros, equações e gráficos).
No entanto, antes de escrever uma tese, é necessário saber escrever. Saber escrever em Português. Esta minha ênfase neste assunto, resulta da chamada de atenção de muitos docentes, inclusivamente a nível universitário, sobre o facto de encontrarem inúmeros erros, sejam eles gramaticais ou ortográficos, tanto em exames como nas próprias teses. Assim, este livro dedica um capítulo à escrita (Capítulo 4 – Escrever correctamente).
Por falar em escrever correctamente, a segunda sugestão é novamente dedicada à escrita de Português, porque nunca é de mais insistir. Desta vez o título indicado é “Complementos Indirectos – Um Guia Prático para uma Escrita Feliz em Português”, da autoria de Clara Pinto Correia. Este livro é o resultado das aulas leccionadas pela docente, no Workshop de Escrita para Biólogos, na Universidade Lusófona. O interesse deste livro passa não só pelas indicações que a autora dá sobre como escrever correctamente em português (pontuação, gramática ou ortografia), como também pelos exercícios que se encontram ao longo da obra.

Nota: Apenas como curiosidade, por coincidência, os três autores são docentes na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.


Referências:

Alexandre Pereira & Carlos Poupa, “Como escrever uma tese, monografia ou livro científico usando o Word” – 3ª edição - revista, Edições Sílabo, Lisboa, 2006

Clara Pinto Correia, “Complementos Indirectos – Um Guia Prático para uma Escrita Feliz em Português”, Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2007

sábado, 13 de setembro de 2008

Homens do Mar em Portugal I - O Cego do Maio





"DOM LUÍS, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc.: Tomando em consideração os relevantíssimos e repetidos actos de coragem e de devoção cívica que José Rodrigues Maio, da Póvoa de Varzim, tem praticado, arriscando a vida no salvamento de muitos indivíduos que teriam perecido se não fossem os esforços e verdadeira abnegação de tão benemérito cidadão; e Querendo, por estes respeitos, dar-lhe um público testemunho da Minha Real Munificência: Hei por bem fazer-lhe mercê de o nomear Cavaleiro da Antiga e muito Nobre Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito." (cit. em Santos Graça, p.43) O Rei Dom Luís I (1838-1889) condecorava em sessão solene no Palácio de Cristal o cidadão poveiro José Rodrigues Maio a 15 de Dezembro de 1881, por actos de heroísmo no mar. José Rodrigues Maio - conhecido como Cego do Maio -, pescador, tinha nascido a 8 de Outubro de 1817 e faleceu a 13 de Novembro de 1884. "Admirável Lobo marinho da praia da Fabita!... Nascera ali, numa modesta casinha, onde sempre viveu e onde a morte o procurou para o levar. Bem frente ao mar, ao abrir o postigo da porta de sua casa, via sempre, lá adiante, entre a penedia trágica do sul da enseada, como dois tigres de fauces hiantes, as fatídicas pedras Mobelhe e Extremundes, para onde a forte corrente da barra arrastava os desgraçados náufragos, perdidos para sempre no redemoinho das vagas, numa luta desesperada de esgotamento. Foi naquela penedia que o Cego do Maio começou a sua faina de pesca." (Santos Graça, pp.43-44) Experimentou-se entre as vagas do mar que, há 130 anos, era terrível dada a falta de segurança nas costas. Dizia Raul Brandão em 1921: "Como morrem [os poveiros] dizia-o, muito melhor do que eu, o velho cemitério da Póvoa, que já não existe. Ia-se passando de túmulo em túmulo e lia-se sempre: - António Libó, morto no mar; Francisco Perneta, morto no mar; José Mouco, morto no mar... De onde a onde havia uma redoma de vidro com alguns ossos brancos e mirrados que tinham dado à costa. E depois, seguiam-se os letreiros - sempre! sempre! - Domingos Reigoiça, morto no mar; Joaquim Monco, morto no mar... Todos eles vivem no mar - e morrem no mar." (Os Pescadores, p.57) O historiador Oliveira Martins protestava: "Não basta que ao peito do Maio se pendure a medalha de honra, nem que se dêem vinte mil réis ao Sérgio: é necessário que na praia da Póvoa se construam molhes de abrigo - exactamente para não haver mais náufragos a salvar, nem mais heróis a enobrecer." (cit. em Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.15, p.964) Mas enquanto o Estado não se ocupou destas importantes obras públicas, continuou a existir Cego do Maio que fosse temerariamente com a sua pequena embarcação buscar os náufragos às águas perigosas. Uma vez, conta Santos Graça, ao norte da praia da Fabita, uma vaga fez perder um batel. O barco-vigia conseguiu salvar a tripulação, excepto dois homens que as ondas empurravam contra as rochas. O Cego do Maio, que viu tudo isto, teve o arrojo de se meter pelas altas montanhas de água com dois filhos (Manuel e Francisco) aos remos. O barco ora se perdia ora reaparecia. Finalmente, após algum tempo de combate, uma onda desfaz-se furiosamente contra a areia da praia e vêem-se regressar os poveiros com os homens da companha. A multidão que se juntara a ver entra na água e puxa-os com ânimo. De outra vez, a 25 de Janeiro de 1879, de manhã, tinha-se deitado ao mar uma lancha nova com oito tripulantes, apesar de estar um espesso nevoeiro e o mar agitado. Quatro horas depois, deram à praia os remos e a polé e deduziu-se que houvera acidente. O Cego do Maio atravessou o nevoeiro com os dois filhos e conseguiu salvar ainda cinco pessoas, que trazia no seu barco. Outras façanhas como estas tornaram o poveiro célebre, numa época em que os portugueses, pouco governados pelos homens públicos, se iam amparando uns aos outros pelas praias, planícies e serras do País. A falta de algumas condições mínimas devidas ao trabalho quotidianamente inseguro de muitas pessoas, pela qual reclamava Oliveira Martins, permitiu, no entanto, que personalidades fortes como a de José Rodrigues Maio revelassem as boas características do nosso povo. Teve uma morte estranha este poveiro, segundo a versão de Santos Graça, ouvida a Francisco, filho dele. "E contou-me que o regedor Neta, que era contrário à política do Presidente da Câmara, Pereira Azurar, de quem seu pai era grande admirador e a quem devia benefício, lhe fora pedir o seu voto e o dos filhos. Disse-lhe secamente que não! Seu pai encontrava-se a comer uma tigela de papas encostado a um varal. O regedor agastou-se e ameaçou-o, dizendo-lhe que lhe tirava as farroncas. Seu pai, genioso, não se conteve e atirou-lhe com a tigela de papas" (p.115). Duas horas depois, uma mulher veio avisá-los que vinha aí gente prender o poveiro. O Cego do Maio fugiu e esteve escondido presumivelmente uns dias, porque tinha a casa cercada. Era uma vergonha para os poveiros ir preso ou ficar sob os ferros d'El-Rei. Foi nessa altura que se começou a sentir doente e teve que se acamar. A morte de António da Mata, um arrais de barco de pesca e companheiro de trabalhos marítimos, por essa altura, terá sido, segundo a fonte, um grande choque para o Cego do Maio. Delirou durante oito dias e morreu a 13 de Novembro de 1884, com 67 anos.
Fontes:
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.15, pp.964-965;
Epopeia dos Humildes (Para a História Trágico-Marítima dos Poveiros), A. Santos Graça, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 2005, pp.41-47 e 115-116;
Os Pescadores, Raul Brandão, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses pp.52-57.
A imagem veio do site da Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim: http://ww.cm-pvarzim.pt/biblioteca/.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Aqui há Gato

Não foi por acaso que escolhi as duas obras de Carroll para leitura de férias. De facto, há já uns tempos que congeminava usá-las como preliminares para a leitura de um outro livro, intitulado “A Rainha de Copas”. Esta, é uma obra de divulgação científica escrita por Matt Ridley, autor de “Genoma”.
Este título foi um entre os diversos aconselhados pela docente da disciplina de Estratégias Sexuais. Foi numa das aulas, em que a professora explicava em que é que consistia a hipótese da red queen, que comecei a franzir o sobrolho.
Como em breve se vai entender, o conceito da red queen é baseado num dos contos de Lewis Carroll, e a ideia subjacente a esta personagem é que quando uma espécie evolui, outras espécies que mantêm relações com a espécie inicial terão de acompanhar essa evolução. As relações que refiro podem ser de predação ou parasitismo. Deste modo, se uma presa adquire uma habilidade ao longo da escala de tempo evolutiva para escapar a um predador, este terá de arranjar maneira de acompanhar essa evolução.[1] É por esta razão que também se designa este conceito de corrida ao armamento.
Fazendo uso do livro para melhor me explicar, segue o seguinte excerto:

“Em biologia, este conceito de que todo o progresso é relativo passou a ser conhecido pelo nome de «Rainha de Copas», baseado numa peça de xadrez que a Alice conhece em Through the Looking Glass (Do Outro Lado do Espelho) que corre perpetuamente sem avançar muito porque a paisagem se move com ela [...] Quanto mais depressa o leitor correr, mais o mundo se move consigo e menos o leitor progride.”[2]

E acrescenta-se:

“O significado da Rainha de Copas é que ela corre, mas fica no mesmo lugar. O mundo continua a chegar ao ponto de partida, existe alteração, mas não existe progresso.”[3]

Explicado o conceito da red queen, resta-me apenas explicar o porquê de ter franzido o sobrolho, como acima descrevi. A minha desconfiança não se prende com o conceito em si, mas com a designação. Ou melhor, com a tradução para português da designação. Creio que o leitor mais atento já entendeu onde eu quero chegar, atendendo à explicação dada até agora e recorrendo aos posts anteriores referentes às duas obras de Lewis Carroll. Acontece que a tradução correcta será de Red Queen para Rainha Vermelha, que é a tal peça de xadrez que encontramos em O Outro Lado do Espelho. A Rainha de Copas (Queen of Hearts) é a personagem que é parte integrante de um baralho de cartas, que se encontra em Alice no País das Maravilhas. O mesmo autor, diferentes obras, diferentes personagens.
Não sei se a tradução do conceito deste modo foi intencional ou acidental, mas também não pretendo ajuizar sobre o assunto. Fica feita a chamada da atenção.


Fontes:

Matt Ridley, A Rainha de Copas – O Sexo e a Evolução da Natureza Humana, Gradiva, Lisboa, 2004 – Tradução de Carla Rego

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, Abril Controljornal, Biblioteca Visão, Colecção Novis, Linda-a-Velha, Portugal, 2000 – Tradução: Vera Azancot.

Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho, Biblioteca Editores Independentes, Relógio D’Água Editores, 2007 – Tradução: Margarida Vale de Gato

[1] Nota: Quando me refiro a presa e predador, estou a fazê-lo enquanto espécies e não enquanto indivíduos.
[2] Matt Ridley, A Rainha de Copas – O Sexo e a Evolução da Natureza Humana, p.28
[3] Idem, p.75

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Novidades no Direito Marítimo Português II

Continua a faltar em Portugal uma nova lei, possivelmente codificada, que sistematize a matéria relativa ao Direito Marítimo, actualmente "espalhado" em várias normas que, não raro, são dfíceis de conciliar conceptualmente. Também na doutrina portuguesa não há ainda um manual de Direito Marítimo abrangente e actualizado, pelo que as contribuições neste domínio, apesar de ainda insuficientes, vão orientando os juristas que quotidianamente se dedicam aos assuntos marítimos. Neste sentido, foi publicado um novo livro pela Almedina, na Colecção Direito Marítimo e dos Transportes: Da Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, Hugo Ramos Alves, 2008. Outra editora jurídica, a Quid Juris publicou também um manual: Direito Comercial Marítimo de Luís da Costa Diogo e Rui Januário, 2008. É um livro um tanto abrangente, com breves conceitos, que pode ser um bom guia, mas ainda insuficiente para as grandes exigências quer práticas quer teóricas deste ramo.