quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Delmira Agustini (1886-1914), poetisa

Delmira Agustini, autora do poema que aqui reproduzimos, foi uma escritora uruguaia do século XX. Natural de Montevideo, onde nasceu em 1886, aos 16 anos já escrevia poesia. Casada com Enrique Job Reyes, com quem se deu mal, acabaria assassinada por ele em 1914. Escreveu El libro blanco (1907), Cantos de la mañana (1910) e Los cálices vacíos (1913).

Explosión

Si la vida es amor, bendita sea!
Quiero más vida para amar! Hoy siento
Que no valen mil años de la idea
Lo que un minuto azul de sentimiento.

Mi corazón moría triste y lento...
Hoy abre en luz como una flor febea;
¡La vida brota como un mar violento
Donde la mano del amor golpea!

Hoy partió hacia la noche, triste, fría,
Rotas las alas mi melancolía;
Como una vieja mancha de dolor
En la sombra lejana se deslíe...
Mi vida toda canta, besa, ríe!
Mi vida toda es uma boca em flor!

(El libro blanco, 1907)

Fonte: Antología del modernismo literario hispánico, org. de Vicente Sabido e Ángel Esteban, Granada, 2001, Editorial Comares, p. 303.

Poesia de Sóror Madalena da Glória

Por vezes, procurando no velho baú da História Literária Portuguesa, ao lado dos grandes artistas, encontram-se alguns outros, esquecidos, mas cujo trabalho merece ser reconhecido, pois não desvalorizam as nossas Letras. Sóror Madalena da Glória, de cuja poesia reproduzimos uma breve amostra, é um desses exemplos. Maria Madalena Eufémia da Glória, escritora portuguesa que os contemporâneos chamaram "fénix dos engenhos", nasceu em Sintra a 11 de Maio de 1672, filha de Henrique Carvalho de Sousa e de Helena de Távora. Em Março de 1688 professou no Convento da Esperança e, presumivelmente, foi religiosa durante toda a sua vida. Não se sabe quando faleceu, excepto que era ainda viva em 1759. Deixou as seguintes obras: Astro brilhante em novo mundo, flagrante flor do Paraíso, plantada no jardim da América; História panegírica de Santa Rosa de Santa Maria (1733); Novena de Santa Rosa de Santa Maria (1734); Orbe celeste, adornado de brilhantes estrelas e dois ramalhetes (1742); Águia real, fénix abrasado, pelicano amante, história panegírica, e vida prodigios do ínclito patriarca Santo Agostinho (1744); Reino da Babilónia, ganhado pelas armas do Empíreo (1749).
Poemas da obra Brados do desengano, contra o profundo sono do esquecimento, em três histórias exemplares, para melhor conhecer-se o pouco que duram as vaidades do mundo, de 1736 [Trata-se da primeira parte; houve uma segunda em 1739.]:
I
Esse sono, em que cego vás passando,
Essa vida mortal, em que confias,
Já nas asas do tempo vai voando,
Porque da vida instantes são os dias:
Olha que tu com Deus vás porfiando,
E não valem com Deus tuas profias,
Que a vida é vidro leve, a pedra forte;
E não terás escudo contra a morte.
(...)
III
Esse monte de fogo, que nascendo
Em campo de safiras luz ardente,
Em chegando ao zénite, já vai descendo,
Quando o viste subir do seu oriente:
Nasceu luz, cresceu sol, porém morrendo,
Nem luz, nem sol se mostra no ocidente,
Pois se da vida o sol não tem dois dias,
Mortal, como em instantes te confias?
(Poesia Portuguesa - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto, Porto Editora, 2009, pp. 599-600)
Poesia singela, formalmente muito bela e equilibrada, cujo tema é a fragilidade das coisas, da vida em particular, a fazer lembrar, neste sentido, a poesia de Ricardo Reis (Fernando Pessoa). Todavia, a memória de Madalena da Glória não é assim tão frágil, pois que se recorda aqui hoje, passados quase 300 anos.
Fontes: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.12, Lisboa - Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limitada, s.d., p.445, s.v. "Glória (Maria Madalena Eufémia da)"; Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol.1, coord. de Eugénio Lisboa, Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d., pp. 472-473, s.v. "Glória, Soror madalena da".

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Artistas Rebeldes




A primeira geração formada na Academia de Belas Artes de Lisboa (criada em 1836) fez-se representar em 1855, pelo pintor João Cristino da Silva, pintando ao ar livre. “Cinco Artistas em Sintra” representa um acto de revolta liderado por Tomás da Anunciação contra o Mestre Manuel da Fonseca (professor durante 2 gerações na Academia em Lisboa) e contra a falta de recursos financeiros necessários para o investimento dos artistas-aprendizes. Tomás da Anunciação, João Cristino da Silva, José Rodrigues, Francisco Metrass e Vitor Bastos (o único escultor do grupo de pintores) reinvindicam assim a vontade de pintar sobre o motivo (pintar ao ar-livre), criticando deste modo a formação neoclássica conservadora que o Mestre Fonseca trouxera de Roma, baseada em cópias produzidas em atelier, de mestres antigos, de estampas de paisagens e na produção de uma pintura de História apoiada nas iconografias clássicas (considerada ultrapassada pela nova geração).

Do atelier para o ar-livre, os Cinco Artistas fazem-se representar em Sintra (terras do romantismo de D. Fernando e do seu Palácio da Pena) a ensinar o povo, demonstrando um programa simbólico muito significativo, próprio de um novo regime político (fontismo). O campo vai, deste modo, receber esta nova geração sedenta de novas temáticas que olham para a Natureza intocada pelo Homem, para a população rural e seus costumes. Olhando para o contexto europeu, entre as décadas de 50 a 70 de Oitocentos, criou-se a consciência de que se estava a perder a cultura e a tradição camponesa e rural. Criou-se um momento de nostalgia por aquilo que se estava a fazer, o que veio reforçar as temáticas anti-académicas (paisagem e retrato) e abrir caminho para um culto da Natureza.

Estes artistas, apesar de apenas produzirem esboços iniciais ao ar-livre e terminarem as suas obras em atelier sobre fundos de betume (tratamento que permite absorver melhor o óleo mas que acaba por deteriorar as cores), vão abrir caminho para uma nova geração – a geração do Grupo do Leão.

É de referir, no entanto, que o Romantismo em Portugal reside sobretudo na literatura (com Almeida Garrett e Alexandre Herculano) e na arquitectura (Palácio da Pena, Quinta da Regaleira, Buçaco). Por sua vez, a pintura “romântica” iniciada pela geração de Anunciação não tem o pathos romântico que a legitimiza, assim como a temática mística, poética e de ruínas está ausente. É neste argumento que se funda a opinião de alguns autores (como R.H.S), que olham para este ciclo como um pré-naturalismo.

Resgatando uma vítima do terramoto de 1755


Esta imagem pintada a óleo que se encontra na exposição permanente do Museu da Cidade de Lisboa, é um ex-voto da segunda metade do século XVIII. Um ex-voto consiste numa oferenda a uma divindade, em agradecimento por uma graça concedida em tempos difíceis. Para os Católicos, tem expressão num objecto primeiramente prometido e depois oferecido a Deus, a Nossa Senhora ou aos Santos, agradecendo uma prece formulada e por algum d' Eles atendida. No caso em apreço, Leonardo Rodrigues, provavelmente residente em Lisboa, dedica esta pintura a Nossa Senhora da Estrela, por ter conseguido encontrar a filha de três anos com vida, entre as ruínas da sua habitação, na sequência do terramoto de 1 de Novembro de 1755. O texto que acompanha a imagem (abaixo reproduzido) é uma expressão notável da fé católica e, pode pensar-se, a súplica deste homem terá tido a atenção dos Céus. Todavia, Leonardo Rodrigues não ficou inactivo: fez a sua promessa e depois pôs-se a procurar a filha, o que lhe demorou sete horas. Isto prova que, para aqueles que têm fé, é mais saudável pensar que a divindade tem um papel, mas que o crente também, pois os desejos não se devem esgotar nas preces. O quadro representa essa mesma ideia: um grupo de homens (entre os quais figurará o pai da criança) removendo os obstáculos das ruínas, com o patrocínio de Nossa Senhora que aparece no canto superior esquerdo.

"A nossa Senhoª da Estrella/voto que no terremoto de 1755 fez/Leonardo Rodrigues; porque fal/tando-lhe huma filha de 3 anos/invocando ajudª Santissima a achou depo/es de 7 horas nas ruinas das su/as cazas com huma tão perigosa/ferida na cabeça, que atribue a sua/vida à intercessão da Soberana/Senhora."

A imagem e a frase vêm reproduzidas no site do Museu da Cidade de Lisboa: http://www.museudacidade.pt/Coleccoes/Pintura/Paginas/Ex-voto-a-Nossa-Senhora-da-Estrela.aspx.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Há 202 anos atrás...

Que melhor motivo para me estrear nesta nova aventura de escrita do que escrever uma pequena nota sobre quem vai ocupar grande parte dos meus dias nos próximos 6 meses?
Pois é, no próximo Sábado (12 de Fevereiro), 202 anos após o seu nascimento, celebra-se um pouco por todo o mundo o Dia de Darwin (http://www.darwinday.org/index.php).

O primeiro evento para celebrar esta efeméride teve lugar a 22 de Abril de 1995 na Universidade de Stanford, e foi promovido pelo Grupo de Estudantes Humanistas de Stanford e pela Comunidade Humanista. Nessa ocasião, Donald Johnson, famoso pela descoberta dos fósseis humanos mais conhecidos do mundo ('Lucy'), foi o responsável pela conferência "Darwin e as Origens Humanas", que reuniu cerca de 600 pessoas. Posteriormente, mudou-se a data da celebração de forma a coincidir com o aniverário de Charles Darwin, a 12 de Fevereiro. Desde então, são muitas as instituições públicas e privadas que organizam diferentes actividades de divulgação do conhecimento científico com motivo desta celebração.

Ne
ste ano de 2011, a Universidade do Porto une-se às comemorações e, aproveitando a exposição "A Evolução de Darwin", promove um dia aberto de visita gratuita.
Para além disso, o biólogo Albano Beja Pereira (CIBIO) apresentará a palestra "A evolução dos animais domésticos segundo Darwin: O exemplo de como os Homens tambem foram domesticados". Esta conferência terá lugar no Jardim Botânico do Porto, onde também está patente a exposição, no Auditório Jardim às 17:30h; também com entrada livre.
Fica então aqui, uma vez mais, o convite para que apareçam pelo Jardim Botânico do Porto e disfrutem desta bela exposição e do seu entorno. Até lá!

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os Teatros de Lisboa


Julio Cezar Machado (1835-1890) foi um dos mais interessantes autores portugueses do seu século. Apesar de ter publicado ficção, as suas obras mais cativantes são as que falam da sua época. Sobre Lisboa deixou numerosas crónicas que fazem a cidade como que reviver, com as suas ruas e as suas figuras típicas, passados cerca de 150 anos. Podem nomear-se, por exemplo, a Lisboa na Rua (1874) ou a Lisboa de Ontem (1877). Hoje, no entanto, falaremos d' Os Teatros de Lisboa, de 1875, reeditado pela Frenesi em 2002, conservando as ilustrações de Raphael Bordallo Pinheiro. Ao longo de cerca de 130 páginas, aliás muito bem escritas dentro de um estilo familiar e pitoresco sem deixar de ser cuidado, o folhetinista fala dos artistas (actores, dramaturgos, músicos) que trabalhavam nos teatros S. Carlos, D. Maria II e Trindade. Se António de Sousa Bastos (1844-1911) no seu Diccionario do Theatro Portuguez (1908) nos deixou um trabalho de erudição, muito investigado e em tom sério, Julio Cezar Machado oferece-nos o complemento vivo, palpável, susceptível de empatia imediata, do mesmo assunto. Descrevendo as figuras do teatro português um pouco como Bordallo Pinheiro as traçava à pena nos jornais, o escritor deixa um retrato jovial e crítico de numerosas celebridades de então: Emília das Neves, Coppolla, Santos, Manuela Rey, Beneventano, Garrett, para citar uns poucos. É um testemunho precioso, pois, como se disse, lê-se como se fosse a vida a decorrer.

Excerto do livro:
"O outro director da orquestra, Guilherme Cossoul, dava em aplicação, em assiduidade, em atenção e em paciência quanto bastasse por dois. Eram-lhe incumbidas as óperas difíceis, que requressem grande número de ensaios e aquela perseverança que não quer ser paga noutra moeda senão a glória de agradar e de vencer. O público teve sempre confiança nas óperas dirigidas por Cossoul; e os cantores iam para a cena com esperança e fé, em ele estando de poleiro no meio dos músicos, ou antes, por cima deles, no seu estrado de honra. Quando se interessava por algum artista, fazia tais prodígios com a batuta, que a maior parte da gente incapaz de compreender a paixão da arte julgava-o namorado. Foi assim que se espalhou que ele ia casar ora com uma prima-donna, ora com outra, e cada ano lhe atribuíam noiva, até que a última cortou a legenda no melhor do boato, a cantora Harris. (...) Guilherme Cossoul nem dava por estas coisas. Qual! Ia regendo a orquestra. Ia ensaiando os cantores. Ia trabalhando. Gravemente. Austeramente. (...) Depois, fora do teatro, ia sendo bombeiro, e, ainda mais que bombeiro, bombista!..., isto é, brincalhão, farsista, trocista, calçoísta! (...) Há casos em que se tem medo dele como do Diabo, por seus artifícios e malefícios. (...) Os menos prudentes, tão depressa o vêem aparecer, tomam desde logo precauções injuriosas. Se é no campo e ele vai estar de hóspede na mesma casa em que estejamos, tem uma pessoa todas as noites de visitar o quarto, abaixar-se, ver bem por baixo da cama, remexer os móveis, sondar as paredes, tapar o buraco da fechadura, dar três voltas à chave e guardá-la segura. E apesar deste luxo de precauções ainda se fica inquieto... (...) Principiam sempre as hostilidades quando os convivas, munidos cada um com a competente palmatória e vela de estearina, vão tranquilamente para os seus quartos. cai de repente em cima deles uma chuva de travesseiros e de almofadinhas, que apaga de repente as luzes. Pragas de um lado, risota do outro, lá se acende a luz outra vez; e cada um, instruído já pela experiência, vai de degrau em degrau abrigando a chama com mão protectora..." (Júlio César Machado e Rafael Bordalo Pinheiro, Os Teatros de Lisboa, Lisboa, Frenesi, 2002, pp.35-40; a imagem reproduzida vem na p.2.)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Exposição "A Evolução de Darwin" - Porto

Informa-se que a exposição "A Evolução de Darwin" estreou a semana passada na cidade do Porto, e ficará em exibição até 17 de Julho. Esta iniciativa coincide com a continuação da celebração do centenário da República (1910-2010) e com o centenário da Universidade do Porto (1911-2011).
Este evento tem por base a mesma exposição que se realizou em 2009, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, por altura da comemoração dos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e dos 150 anos da publicação da sua obra máxima "A Origem das Espécies". No entanto, apresenta dois módulos novos muito interessantes dedicados à genética humana e à recepção do Darwinismo em Portugal.
Destaque para o local onde se realiza a exposição, que é na Casa Andresen, sito no Jardim Botânico do Porto, palacete que pertenceu aos familiares da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, e posteriormente, serviu de departamento de Botânica para aulas universitárias. Uma vez que o edifício se encontrava profundamente degradado, foram efectuadas obras de reabilitação para acolher este evento, sendo que no futuro este espaço dará lugar a um museu de biodiversidade.
Existem, portanto, várias razões para visitar esta iniciativa cultural no Porto: vê a exposição, visita as estufas onde estarão animais e plantas que representam a biodiversidade que Darwin encontrou na sua viagem, conhece a famosa Casa Andresen, e passeia pelos belos jardins que rodeiam o palacete.


sábado, 5 de fevereiro de 2011

Fotografias Antigas (2): Raquel Roque Gameiro, 1911

Fotografia colorida da Ilustração Portugueza, que saía uma vez por semana com O Século, de 27 de Novembro de 1911. A senhora representada, então com 22 anos, é a pintora e ilustradora Raquel Roque Gameiro (1889-1970), filha do prestigiado artista Alfredo Roque Gameiro (1864-1935). Como pintora, expôs em Lisboa, no Porto e em Londres. Ilustrou obras para crianças, nomeadamente da autoria de Ana de Castro Osório (1872-1935) e de António Sérgio (1883-1969).

Fonte:
AAVV, Percursos, Conquistas e Derrotas das Mulheres na 1ª República, coord. de Teresa Pinto, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa - Grupo de Trabalho para as Comemorações Municipais do Centenário da República - Biblioteca Museu República e Resistência, 2010, p.131.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O Chapéu de Três Bicos


Em 1874, Pedro Antonio de Alarcón (1833-1891), escritor espanhol natural de Granada, publicava a novela El Sombrero de Tres Picos. A acção é situada algures na Andaluzia, entre 1805 e 1808. Está-se numa Península Ibérica gerida segundo o Antigo Regime, "com a sua Inquisição e os seus frades, com a sua pitoresca desigualdade perante a lei, com os seus privilégios, foros e isenções pessoais, com a sua carência de toda a liberdade municipal ou política, [em que os cidadãos eram] governados simultaneamente por insignes bispos e poderosos corregedores" e pagavam "dízimos, primícias, alcavalas, subsídios, deixas e esmolas obrigatórias, rendas, capitações, tércias reais, impostos, frutos civis, e até cinquenta tributos mais" (pp.16-17). A história é precisamente sobre um velho e atrevido corregedor, cujos poderes servem mais os seus desejos pessoais e nem sempre inocentes, verdadeira síntese do Antigo Regime, embrulhado numa capa e coberto com um chapéu de três bicos (ou tricórnio), que na Península se usaram até bem dentro do século XIX. É pois sobre o corregedor e sobre como quis conquistar a Tia Frasquita, esposa do Tio Lucas, moleiro. E de como os alargados privilégios de uma classe podem não ser tudo na vida, porque nem tudo conseguem obter. A novela retrata uma época comum a Espanha e a Portugal, um tempo em que os povos peninsulares, ainda presos sob os costumes que vinham desde a Idade Média, olhavam com alguma esperança para os ideais do constitucionalismo que vinham do estrangeiro. É um modelo de sociedade que actualmente não conhecemos, pois as nossas são a natural evolução dos regimes liberais então implantados. É por isso que, com muito humor, António Pedro de Alarcón nos diz recordar da sua infância "ter visto pendurados num prego, único adorno da desmantelada parede da arruinada torre da casa que Sua Senhoria habitou (...), aquelas duas antiquadas jóias, aquela capa e aquele chapéu - o chapéu negro em cima, e a capa vermelha debaixo -, formando como que um espectro do absolutismo, uma espécie de mortalha do corregedor, uma caricatura retrospectiva do seu poder (...); uma espécie enfim de espanta-pássaros, que outrora fora espanta-homens e que hoje me assusta ter contribuído para escarnecer, passeando-a por aquela histórica cidade nos dias de Entrudo, no alto duma vassoura, ou servindo de ridículo disfarce ao idiota que mais fazia rir a plebe" (p.35). No entanto, sem mencionar mais o valioso testemunho, ainda que caricaturado, da sociedade do virar do século XVIII para o XIX, esta novela reforça a saudade do serão familiar ou, melhor ainda, comunitário, fazendo lembrar, por exemplo, o convívio que no campo se organizava nas desfolhadas. Isto porque quem conta verdadeiramente a história, inevitavelmente retocada por Alarcón, é o Tio Repela, "um rude pastor de cabras, que nunca saíra da escondida povoação em que nasceu (...). (...) Sempre que havia festa motivada por boda ou baptizado, ou por solene visita dos amos, tocava-lhe o fazer as palhaçadas, as pantominas, e recitar os romances e relações. E foi precisamente numa ocasião dessas (...) que ele houve por bem deslumbrar e embelezar certa noite a nossa inocência (relativa) com o conto em verso de «O Corregedor e a Moleira», ou seja de «O Moleiro e a Corregedora»" (p.7). Em todo o caso, uma história em que "não se aconselha ninguém a que seja mau; nem se ensina a sê-lo; nem fica sem castigo o que o é" (p.9), fazendo lembrar a moralidade d' Os Contos do Tio Joaquim, de Rodrigo Paganino, dos quais se falou já neste espaço. Uma excelente leitura, que prova que a literatura popular tem vivacidade suficiente para ombrear e, quantas vezes!, ultrapassar a arte erudita, frequentemente tão desfeada pela vaidade e presunção dos artistas.
Referência:
Pedro Antonio de Alarcón, O Chapéu de Três Bicos, Publicações Europa-América, 1973.