quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Contos e Histórias, de Luís de Araújo

Na continuidade do que há tempos deixámos aqui comentado sobre a obra de Júlio César Machado (Os Teatros de Lisboa), damos hoje a conhecer outro autor popular do século XIX: Luís António de Araújo (1833-1908). Jornalista e funcionário do Ministério das Obras Públicas, grande observador do quotidiano, colaborou em vários periódicos, escreveu diversas comédias e até manteve um almanaque humorístico com o seu nome. Quem actualmente procurar as obras de Luís de Araújo, deparar-se-á imediatamente com os Contos e Histórias (1871), especialmente por ter uma edição moderna (1984). Este livro é uma sucessão de frescos, em que os costumes oitocentistas são captados nos seus traços fundamentais. São cenas do dia-a-dia, como a chegada das lavadeiras com as roupas dadas aos rol, intrigas de criadas, práticas religiosas, festas e serões familiares, sem esquecer a descrição de alguns tipos fundamentais, como o Galego e a Saloia, cujas formas de falar são reproduzidas, embora sem depreciar. Em alguns casos, poucos, dado o ano de nascimento de Luís Araújo, recua-se ao século XVIII ou ao tempo dos franceses, para descrever as vidas de personagens com que conviveu.

Excerto:

"Eu tive um tio médico.

Já lá está na terra da verdade. O dia em que se finou, foi um dia de luto para toda aquela boa gente de Odivelas.
Meu tio chamava-se Maurício José dos Santos. Era o filho mais velho de meu avô materno, o Dr. Gregório Taumaturgo dos Santos, jurisconsulto bem conhecido e respeitado no seu tempo.
(...)
Meu tio médico, por ter bebido os conselhos do pai, e sair ele tal qual em índole e carácter, eis a razão porque foi tão chorada a sua perda.
Foi em Coimbra premiado vários anos, serviu no exército como físico-mor, foi condecorado pelo Sr. Rei D. João VI, e abandonando a política, em Maio de 1840, foi morar para Odivelas.
Ali, pelas boas acções que praticava, chamavam-lhe O pai dos pobres.
Um dia de manhã cedo procurou-o uma saloia:
seu doutor médeco, eu tenho uma dor aqui, salvo seja, na boca do estamâgo, e vai com o lidar passa-me aos rinzes e apanha-me ós pois as costelas desta banda de riba a baixo. Tenho frementado com enxúndia de galinha; mas a dor é fixa... e então se V. S.ª entender que me purgue, que eu já tomi uns pozes que me deu o seu Silva do Lumiar.
-Cale-se aí vossemecê, e deixe-me ver o pulso. Isso não é nada... tome esta receita e há-de achar-se boa.
A saloia, quando ia a retirar-se, pôs-lhe doze vinténs sobre a carteira.
-Para que é isto?
-É a paga a V.ª S.ª, e se não dou mais, Deus me salve a minh'alma como não tenho ni mais um real de meu.
-Pois guarde Vossa Mercê os seus doze vinténs e compre com eles uma galinha.
Por estas e outras é que todos o adoravam."

Referência: Luís de Araújo, Contos e Histórias, Porto, Lello&Irmão Editores, 1984, pp. 181-182.

1 comentário:

Anónimo disse...

Várias partes do nosso país retratadas neste curto texto: "Foi em Coimbra premiado...", mudou-se para Odivelas, e o livro foi publicado pela editora Lello & Irmão, no Porto. Fiquei curioso pelo livro. gradjo