quinta-feira, 30 de abril de 2009

79ª Feira do Livro de Lisboa

Abriu hoje a 79ª Feira do Livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII, que encerrará a 17 de Maio. A Feira está aberta de 2ª a 5ª feira das 12:30 às 20:30, às 6ª e vésperas de feriados das 12:30 às 23:00, aos Sábados das 11:00 às 23:00 e aos Domingos das 11:00 às 22:00. Haverá, para os interessados, dois pavilhões dedicados ao Brasil e outro ao Arquipélago dos Açores, no qual estarão representados, entre outras entidades, o Instituto Açoriano de Cultura, a Universidade dos Açores, o Instituto Cultural de Ponta Delgada e o Núcleo Cultural da Horta.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Aula Magna - nova revista dedicada aos estudantes e aos assuntos académicos

Saiu em Dezembro o número 0 da revista estudantil Aula Magna. Esta revista pretende ser um órgão de informação independente, dedicado aos assuntos que interessam especialmente aos estudantes de todo o Ensino Superior. De espírito livre e alheio a influências políticas, religiosas ou outras, quer ser um espaço dos estudantes por excelência. "Feita por nós e para ser lida por nós, os estudantes. Vem para falar de nós, do que fazemos, do que procuramos, do que nos rodeia. Vem para fazer tudo isso por dentro, não como algo que nos é oferecido, mas como algo que nos pertence. (...) Queremos ser a revista de tudo o que nos diz respeito e não do que os outros acham que nos diz respeito." Um espaço de ligação e divulgação para diminuir as distâncias entre os estabelecimentos: "Este projecto acredita que nos falta a nós, estudantes, sabermos uns dos outros, do que andamos a fazer, do que se passa à nossa volta, para onde caminha o ensino superior e em que nos vai afectar essa caminhada." No primeiro número há uma reportagem sobre o novo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), uma lei que pode dimimuir substancialmente o peso decisório dos alunos em assuntos de grande importância nas instituições académicas; uma entrevista a Ricardo Araújo Pereira, à volta do humor, do ensino e da literatura; um artigo sobre as possibilidades de vingar na música através da universidade e com o apoio dela, desde que haja um projecto original e a devida publicidade; entre outras coisas. Talvez o mais importante dos objectivos da revista seja o que vem escrito no fim do editorial, o de defender a "ideia de Universidade (de onde não se exclui o ensino politécnico) enquanto centro de criação, transmissão e difusão de cultura e ciência de um país", objectivo muitas vezes esquecido pelos próprios alunos, em quem mais do que em ninguém tem que começar a exigência de um ensino livre, humano, reflectido e com elevação. A revista é gratuita e pode ser encontrada nos estabelecimentos de ensino superior.
Nota: As citações vêm no editorial no número 0.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Como falamos - breve nota sobre o valor patrimonial dos dialectos ou falares portugueses


Não são pacíficos os conceitos exactos de “dialecto” e “falares”. Uma língua estabelece uma unidade em vários sentidos num determinado território, mas apresenta frequentemente numerosas variações. A essas variações se chama “dialectos” ou “falares”. Autores como José Leite de Vasconcellos e Luís Lindley Cintra dizem que dialecto é a variedade de uma língua verificada numa região[1] e reservam os “falares” para a especificidade linguística de uma localidade[2]. Matos Silva e Paiva Boléo preferem chamar “falares” aos “dialectos”. Não nos cabe neste espaço adiantar mais a este respeito. Os conceitos podem ser aprofundados e debatidos em obras da especialidade. Para o efeito, apenas deixaremos estas noções sustentadas pelos dois cientistas. A localização geográfica, com todos os contactos que permite, é uma das principais origens das variações na mesma língua. Dela decorrem a mentalidade, a cultura, a tecnologia e o evoluir do falar, adaptado à comunidade humana que serve. A língua portuguesa demonstra uma considerável riqueza. “Na área vastíssima e descontínua em que é falado[3], o português apresenta-se como qualquer língua viva, internamente diferenciado em variedades que divergem de maneira mais ou menos acentuada quanto à pronúncia, à gramática e ao vocabulário.”[4] Em Portugal, que agora nos interessa, as maiores diferenças vêem-se nos sotaques (pronúncia) e nos regionalismos (vocabulário)[5]. Deve-se a José Leite de Vasconcellos, etnógrafo, a primeira proposta de classificação dos dialectos portugueses, em 1893, criando assim, nas palavras de Lindley Cintra, a “dialectologia científica” no nosso país[6]. Porém, data de muito antes a noção destas diferenças. É com base num conjunto de referências e de vocabulário regional eminentemente beirão que alguns autores defendem que está aí, no centro de Portugal, a terra do dramaturgo Gil Vicente (c.1465-depois de 1536)[7], o que revela uma tipicidade linguística ainda no século XVI. No mesmo sentido, uma nossa gramática antiga (1536) diz: “... os da Beira têm umas falas e os do Alentejo outras.”[8] Actualmente, há perfeita consciência das diferenças regionais do português e alguns sotaques são bem conhecidos. São estas mais um elemento de identidade regional, ao lado dos trajos, da gastronomia e de outras tradições. A língua e as suas variações são inseparáveis das populações que servem e são o reflexo da complexidade social, estão associadas à vida das pessoas, ao trabalho, aos divertimentos e aos ritos (religiosos ou outros). Actualmente, é com algum desgosto que vemos desaparecer estes elementos a favor de uma globalização uniformizadora que não pode entender o valor das identidades nem respeitá-lo. A televisão, por exemplo, veicula quase integralmente o português padronizado, chamado “português padrão europeu”, que “segue a norma ou conjunto dos usos linguísticos das classes cultas da região Lisboa-Coimbra”[9]. O trajo popular já quase só pertence aos grupos folclóricos e a alguns idosos que não deixaram os costumes antigos. E o património dialectal pode perder-se mais cedo do que seria desejável, já que a modernidade não contempla nem as antiqualhas da História nem os usos da Etnografia, tendendo a padronizar todos os aspectos da vida dos povos, a que retira o verdadeiro espírito das tradições com a sua invasão violenta, indiscriminada e vazia de significado. Só o povo pode contrariar estas tendências, cultivando, mais que nunca, a sua natureza, o seu ser português, conservando-a, estudando-a e pensando-a. A propósito das nossas pronúncias, dizia Jaime de Magalhães Lima (1859-1936), jornalista, político e literato português, “que, em determinados casos, a maneira especial de pronunciar alguns vocábulos definia muito melhor uma ideia ou um sentimento, do que o seu enunciado dentro dos padrões normalizados. Entre outras situações, o caso da velha que, ao pretender que o filho lhe ouça um conselho, em lugar de dizer “escuta filho”, suaviza o imperativo da ordem mantendo a pronúncia antiga (com um i a mais), para que assim resulte mais carinhosa e meiga a forma “escuita filho.”[10] É também neste sentido, talvez menos científico, mas mais emotivo e próximo das nossas vivências, que são importantes os trabalhos de recolha de José Leite de Vasconcellos, ou o já citado “Dialecto Alentejano”, editado pela Colibri, que descreve a pronúncia do Alentejo no início do século XX, a partir precisamente dos apontamentos daquele etnógrafo, alguns ainda inéditos. “Já de si pouco separativas, as diferenças entre (...) dialectos atenuaram-se muito mais: o padrão tinha então [pelo início do século passado] menos falantes, estava circunscrito a uma parte apenas da população de algumas cidades, não se distinguia da norma culta. (...) O padrão era inacessível à maioria dos portugueses, que podiam atravessar a vida inteira falando o dialecto aprendido dos pais e modificando-o muito pouco. Não iam à escola, não viajavam, os familiares que emigravam não regressavam mais, não ouviam rádio, nem viam televisão. As condições de conservação de um dialecto eram, assim, do egoísta ponto de vista da ciência, muito boas.”[11] A autora nomeia os agentes uniformizadores: “A escola e os meios de comunicação social foram identificados como os principais agentes da mudança. Escrever e falar “bem” passaram a ser sinónimos de português padrão. Assim se foram abandonando, pouco a pouco, os traços específicos dos diferentes dialectos e a língua passou a ser cada vez mais normalizada. Os estudos no âmbito da dialectologia são, desta forma, um contributo para mostrar que as diferenças também são salutares num mundo que tende cada vez mais para a uniformização.”[12]

Notas:

[1] Tomando como exemplo a terceira classificação dos dialectos portugueses apresentada por José Leite de Vasconcellos e publicada num volume dos “Opúsculos” (1929), a região meridional apresentaria um dialecto, ou seja, uma variação da língua-padrão (português), sendo que um dos sub-dialectos seria o alentejano, o qual ainda apresentaria três variedades: Alto, Baixo e Central.
[2] Dialecto Alentejano – contributos para o seu estudo, Manuela Florêncio, Colibri, 2ªed., Colibri, 2005, pp.16-18. A referência da nota anterior também vem daqui. A imagem reproduzida vem da capa.
[3] Os autores referem-se também às terras que constituíam o império ultramarino português e onde a língua continua a falar-se e teve evolução própria.
[4] Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 18ªedição, Edições João Sá da Costa, 2005, p.9.
[5] Os dialectos portugueses falados na Ásia e em Timor, influenciados pelas línguas nativas, terão variações mais importantes em termos de gramática, ibidem, p.23-24.
[6] Para estas referências, Dialecto Alentejano, p.16.
[7] V., por exemplo, Joaquim Ferreira, História da Literatura Portuguesa, 2ªedição, Editorial Domingos Barreira, pp.204-205.
[8] Cit. em Dialecto Alentejano, com a grafia actualizada, uma vez que a própria autora actualizou uma parte. A referida gramática é tida como a primeira entre nós e é da autoria do gramático Fernão de Oliveira (1507-depois de 1581).
[9] Nova Gramática do Português Contemporâneo, p.10.
[10] João Pequito, “A Nossa Pronúncia”, in “Voz da Minha Terra”, Ano XXXIV, nº423, p.11. Trata-se de um jornal regional do conselho de Mação, a propósito do qual o autor faz uma reflexão sobre a beleza e o significado do sotaque daquela zona. A obra em que Magalhães Lima se refere ao assunto (J. Pequito não a nomeia) será, talvez, “A Língua Portuguesa e os seus Mistérios”, 1923.
[11] Ivo Castro, Curso de História da Língua Portuguesa, 1991, cit. em “Dialecto Alentejano”, pp.84-85.
[12] Ibidem, pp.85-86.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Novidades no Direito Marítimo Português III

Na referida Colecção Direito Marítimo e dos Transportes, da editora Almedina, saiu um novo volume: I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo - O Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias, coord. de Manuel Januário da Costa Gomes, 2008. A obra, como indica o título resulta das I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, que tiveram lugar a 6 e 7 de Março de 2008, e publica-se a maioria das intervenções, quer de especialistas portugueses, quer de estrangeiros. A iniciativa partiu do Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (CDMT) e foi coordenada pelos Professores António Menezes Cordeiro e Manuel Januário da Costa Gomes. As intervenções têm como autores alguns especialistas, como Mário Raposo, José Vasconcelos Esteves e Pedro Romano Martinez. Houve como objectivo a preocupação de divulgar e contribuir para o estudo do Direito Marítimo em Portugal e nos países de expressão portuguesa. Recorde-se que, em Portugal, as cadeiras relacionadas com matérias de Direito Marítimo existem na Escola Náutica, na Universidade Lusófona (no âmbito de pós-graduações) e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Estão já em organização e agendadas para 2010 as II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo.

Gervásio Lobato (1850-1895)



Não era tão analítico como Eça de Queiroz, não era tão pitoresco quanto Camilo, nem azedo como Fialho. As novelas que dele ficaram mais conhecidas lêem-se como se se observasse a vida, toda espontânea; os diálogos – invariavelmente cómicos – são vivos e dinâmicos; as histórias são irónicas e falam, com leveza e espírito crítico, da burguesia lisboeta do final do século XIX, das suas aspirações, dos seus defeitos, das tramas para salvar as aparências. Gervásio Lobato, que foi segundo oficial da Secretaria do Reino, escritor, jornalista e professor de declamação na escola dramática do Conservatório de Lisboa, nasceu em Lisboa a 23 de Abril de 1850. Com o fim de chegar a diplomata, tirou o Curso Superior de Letras e a cadeira de Direito Internacional da Escola Naval, mas acabou por fazer carreira no campo das letras, área em que conseguiu o respeito do público. A vocação já vinha da juventude: aos 15 anos fundou, com alguns condiscípulos, “A Voz Académica”, jornal literário, depois publicou um folhetim no “Diário Popular” e passou a colaborar noutros periódicos, a saber: “Braz Tizana”, “Gazeta de Portugal”, “Gazeta Literária”, “Recreio”, “Jornal da Noite” (fundado por si, por Teixeira de Vasconcelos e outros), “Diário Ilustrado”, “Progresso”, “Correio da Noite”, “Século”, “Diário de Notícias”, “Ocidente”, etc. Ainda fundou, com Pinheiro Chagas, “A Discussão”, depois “Diário da Manhã” e, mais tarde, “Correio da Manhã” e “O Contemporâneo”, com Salvador Marques e Sousa Bastos. Dedicou-se à escrita dramática e escreveu “O Rapto de um Noivo”, com Maximiliano de Azevedo, comédia em 1 acto que foi representada no Teatro D. Maria II. Depois foram duas comédias para o Ginásio: “No Campo” e “Debaixo da Máscara” (1873). Seguiram-se numerosas peças originais ou traduzidas e adaptadas, representadas em todos os teatros portugueses: “As Noivas do Eneias” (1892), “Medicina de Balzac”, “Sua Excelência” (1884), “O Comissário de Polícia” (1890), etc.; algumas operetas e também novelas, de que falaremos adiante. Por altura da representação d’ “O Festim de Baltasar” (1892), com fins caritativos, foi agraciado pelo Rei com o oficialato da Ordem de Santiago. Lêem-se ainda muito bem actualmente as suas novelas e romances: “A Comédia de Lisboa” (1878), “A Primeira Confessada” (1881), Os Invisíveis de Lisboa” (1886-1887), “Os Mistérios do Porto” (1890-1891), “A Comédia do Teatro”, “O Grande Circo” (1893). “Nelas (comédias e farsas) e nos romances que escreveu se faz o processo bem-humorado, mas certeiro, da pequena e média burguesia lisboeta do fim do século, captada nos seus ridículos e manias, na sua vacuidade e mesquinhez de ambições políticas e mundanas.”[1] É ainda célebre (talvez a mais célebre) a sua novela “Lisboa em Camisa” (1890), sobre uma família burguesa de Lisboa. É uma descrição bem-humorada de uma certa classe burguesa que aspira a voos mais altos e se fica invariavelmente pelos negócios comezinhos, pelo “parecer”, já que lhe falta a fibra autêntica dos homens dinâmicos.
Gervásio Lobato faleceu a 26 de Maio de 1895.[2]

Excerto da novela "Lisboa em Camisa":

“O Sr. Justino Antunes tinha um grande desgosto de não ser pai.
Casara havia quatro anos, no Algarve, com uma menina de dezoito anos, filha do administrador do concelho, uma menina muito interessante, muito prendada, que tocava piano que era um encanto, bordava a oiro, e cantava a Traviata em italiano. Era muito feliz com sua mulher, dava-se muito bem com ela, fora por intermédio do seu sogro que alcançara o diploma de membro honorário da Associação dos Arqueólogos e Arquitectos Portugueses, tinham-lhe prometido um lugar de segundo oficial no ministério das obras públicas, e o ser sócio correspondente da Academia de Ciências, mas a respeito de filhos nada.
(...)
O Sr. Antunes alojou-se, pois, com sua família, a mulher, a irmã, o sobrinho e uma criada velha e antiga, a Alexandrina, num quarto andar, do lado dos pares, da rua dos Fanqueiros, portas fronteiras com o conselheiro Torres, que tinha muitas filhas, muito divertidas, que se começaram logo a dar muito com a Angélica e com a D. Josefina.
Tomou posse do seu emprego e, e às Quintas-feiras e aos Domingos, para distrair a família, levava-a ao Museu do Carmo, de que, já dissemos era sócio.
Ali, havia uma coisa que o fazia cismar. Onde demónio estariam umas pedras muito antigas, que ele mandara do Algarve, e que lhe tinham valido o seu diploma?
-Já sei, disse ele um dia, tocado de uma ideia súbita, sorrindo, triunfante, a sua mulher e às meninas Torres, a quem mais uma vez arrastara ao museu à procura das suas pedras, já sei, naturalmente os monumentos que mandei, como eram muito preciosos foram para o paço.
A menina Sabina Torres, a filha mais nova do conselheiro, que não tinha papas na língua, e que ganhara fama de espirituosa descompondo toda a gente, já farta do museu até aos olhos, disse enfastiada ao sr. Antunes:
-Mas que monumentos mandou o senhor, algumas pirâmides?
-Não senhora, monumentos chamam-se a todas as pedras que...
-Ora adeus! Pedras são boas para fazer paredes.
-Exactamente, mas com as pedras que eu mandei, fazem-se os alicerces de um palácio sublime – a história.
E Antunes, achando lá dentro esta bela frase, teve o cuidado de se ir chegando para junto de um guarda, e de a dizer quase a gritar para que ele a ouvisse bem.
(...)
Antunes, adivinhando a admiração no rosto inteligente do guarda, atreveu-se a perguntar-lhe com um sorriso:
-O meu amigo está aqui há muito tempo?
-Há três horas, a porta abriu-se às dez, ainda não é uma.
-Não é isso: se está aqui empregado há muito tempo.
-Há sete anos...
-Então deve lembrar-se de umas pedras que vieram do Algarve... há cinco anos.
E começou a fazer uma larga e minuciosa descrição das suas pedras.
-Vinham também uns quinze ou vinte tijolos muito queimados, coisa que tinha servido de fornalha.
-Exactamente, exactamente, eram os tijolos, decerto, em que os árabes invocavam...
-Lembro-me perfeitamente... estiveram aí a um canto muito tempo.
-Ah! murmurou todo lisonjeado o Antunes, olhando com uns ares superiores para a Sabina.
-E depois foram...
-Para o paço, é o que eu dizia...
-Nada: quando se fez a escada nova, foi preciso pedras, e elas lá foram; olhe, estão ali por debaixo daqueles degraus.
Antunes fez-se pálido.
-Não foram para os alicerces da história, disse, com grandes gargalhadas trocistas, a menina Torres, foram para os alicerces da escada.
Antunes lembrou que nesse dia tocava a charanga de lanceiros no Passeio Público, e que não havia nada mais bonito que uma charanga.
E nunca mais levou a família ao Museu do Carmo.”

In, Lisboa em Camisa, Vega, 1997, pp.15-19.
Notas:
[1] Dicionário Cronológico dos Autores Portugueses, vol. II, Publicações Europa-América, p.336.
[2] A principal fonte desta biografia foi a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.15, pp.342-343.

domingo, 5 de abril de 2009

Visita ao Museu Nacional de Etnologia (2006)

1.Visita ao Museu Nacional de Etnologia

O texto que agora se apresenta é o de uns breves apontamentos que tirámos durante uma visita ao Museu Nacional de Etnologia, em Maio de 2006. Na altura, o tempo de que dispúnhamos e a observação demorada das peças apenas permitiu a impressão cuidada de duas colecções: a da panaria guineense e cabo-verdiana e a das máscaras do Mali. Acrescentamos hoje, porém, alguns dados indispensáveis para a contextualização das notas, nomeadamente sobre a criação do M.N.E. Apesar do tempo que já passou, achámos que valia a pena partilhar este escrito, quanto mais não fosse para tentar despertar a curiosidade de visitar o Museu.

2.O Museu

“O Museu Nacional de Etnologia é indissociável da história da antropologia portuguesa. Nele se vem a projectar uma dimensão fundamental do trabalho dos pioneiros desta disciplina no país. A partir do Centro de Estudos de Etnologia, que dirige desde 1947, Jorge Dias e aqueles que o irão acompanhar nos anos subsequentes, Margot Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, entre outros, iniciam uma pesquisa extensiva e continuada sobre os elementos da cultura material que, anos mais tarde, viriam a ser igualmente recolhidos para constituir as colecções do museu. O trajecto daquele antropólogo vai conduzi-lo e a Margot Dias ao norte de Moçambique onde, em sucessivos períodos de trabalho de campo, com início em 1957, vão construir uma sólida etnografia sobre o povo Maconde. O resultado parcial daquela investigação será objecto de uma exposição realizada em Lisboa em 1959 e é neste contexto que surge a intenção explícita da criação de um Museu de Etnologia. Em 1965 o Museu é criado com o ambicioso programa de representar as culturas dos povos do globo não se restringindo, pois, nem a Portugal nem aos domínios ultramarinos sob a sua administração.”[1] O acervo do M.N.E. é hoje formado por cerca de 30.000 peças, que procuram responder ao objectivo de universalidade. Assim, entre elas estão alfaias agrícolas portuguesas – algumas a cair em desuso, por causa da modernização na agricultura –, uma colecção de olaria que cobre todo o País, uma colecção de máscaras e marionetas do Mali, vários objectos de povos da Amazónia, conjuntos também de Angola, Moçambique, Timor e outras. Há uma preocupação notória de alternar peças propriamente ditas com extractos de filmes ou fotografias, que expliquem e completem o significado e a utilidade daquelas.
O Museu tem uma biblioteca especializada na área da Antropologia, com títulos de estudos, teses e revistas, para acesso dos interessados em aprofundar os seus conhecimentos nestas matérias.
Há um Serviço Educativo ligado ao M.N.E. que visa dar a conhecer as suas colecções ao público, através de visitas guiadas, preparação de visitas com docentes, publicação de obras sobre o acervo e espaços lúdicos e culturais para os mais jovens.

3.Etnologia

Entende-se por Etnologia o estudo cultural do Homem. Neste ramo do saber se abordam a técnica e as realizações materiais, a organização social, a religião, a magia, a arte “e, sob certos aspectos, também, a ciência”, entendidas como “unidade funcional”, ou seja, partes inseparáveis do conjunto de conhecimentos e valores que fazem uma cultura humana[2]. Alguns cientistas distinguem-na de Etnografia. Esta é a recolha e descrição de elementos vários e aquela a comparação das culturas, através da sua evolução histórica. A Etnografia fornece a descrição de costumes e tradições dos povos à Etnologia. Esta constrói teorias e leis com base nelas. Em princípio, os povos que interessam à Etnologia são aqueles que vivem com meios técnicos elementares, ou, também se diz, em “estado natural”. Os esquimós, algumas tribos africanas ou americanas, por exemplo, inserem-se nessa classificação. As mesmas matérias referentes aos chamados povos “mais avançados” tecnologicamente são estudadas por ciências à parte, como “a Orientalística, a Indologia, a Sinologia”[3] e também a História. Porém, é de crer que estes povos também podem ter as suas etnologia e etnografia, dadas as suas produções mais primitivas – o que não quer dizer desaparecidas – presentes ainda nas zonas rurais, desde alfaias, até à poesia popular, matérias quase intocadas e em contacto quase directo com tempos muito antigos[4].
As peças que adiante descrevemos são, portanto, manifestações materiais da cultura e da mentalidade, longamente construídas pelos povos inseridos nos seus territórios, como forma espontânea de entender o ambiente e de lhe responder. Obviamente, ambientes diferentes originam respostas diferentes: daí a diversidade de culturas.
Não tivemos oportunidade de acompanhar a visita guiada que se fez à Sala das Alfaias de Portugal, mas visitámos a Sala dos Panos e a Sala das Marionetes.

4.Através dos Panos

Esta sala expõe uma colecção de panaria guineense e cabo-verdiana do Museu Nacional de Etnologia, recolhida, na maioria, por António Carreira entre 1960 e 1970.
Os panos, no contexto tribal africano, são bens que definem o prestígio de quem os usa. Os panos assinalam os ciclos de vida, definem as formas das relações sociais e formalizam os seus momentos cerimoniais e rituais.
As meadas ou os panos são tradicionalmente tingidos com pigmentos vegetais, como a urzela[5], o índigo[6] ou o anil[7], que permitem obter vários tons de azul.
No século XVI, Portugal, já na senda dos Descobrimentos, e apercebendo-se do valor das matérias-primas e da panaria, impôs restrições comerciais visando o controlo exclusivo da exploração e comercialização do algodão e dos panos. Isto deu origem ao contrabando, praticado entre os autóctones e os tripulantes dos navios. A partir dos séculos XVIII e XIX, vários factores como as secas, a ascendente influência económica estrangeira, a abolição da escravatura, a inovação tecnológica e a circulação do pano industrial a um custo inferior, fizeram com que decrescesse o cultivo de algodão e, consequentemente, se produzisse menos panaria tradicional. Actualmente, verifica-se o uso crescente de meadas de algodão industriais ou de fio sintético, às vezes importadas de outros países, mais acessíveis em custo e fáceis de trabalhar. Apesar deste claro benefício, ainda para mais para carteiras pobres, sente-se que é perdida uma parte da tradição na confecção actual dos panos. Se já não são produzidos desde a plantação até à conclusão do tecido, apaga-se uma parte essencial do ciclo de vida de uma arte inimitável, o que é uma desvantagem da vida moderna. Tem-se vindo a substituir o que é tradicional, justificando isso pelo baixo custo ou pela rapidez de confecção. Apesar de algumas medidas proteccionistas dos governos, a tradição não é ainda mantida e protegida essencialmente senão pelos interessados. E só tem verdadeiro valor tradicional a peça, qualquer que seja, que respeite todos os passos da criação primitivos.
Os panos expostos são, no geral, coloridos e têm motivos variados que vão desde a expressão mais tradicional, a temas modernos. Alguns têm como tema um animal representativo, como a jibóia, outros têm barcos – como aqueles que no século XV foram vistos pela primeira vez em África –, e há até a expressão de aspirações políticas recentes – de facto, um dos panos tem tecida a imagem de Amílcar Cabral, datado de 1996 e recolhido na Guiné-Bissau.

5.Nota sobre as Designações dos Panos

As definições dos panos derivam da sua origem, tipo de confecção, motivos decorativos ou modo de uso.
Ao pano de Cabo Verde chama-se pano di terra, alusão à origem. Este pode ainda ser pano d’obra, se tiver um padrão complexo e minucioso; ou pano bicho se tiver por motivo um animal.
Os panos guineenses também têm designações. Valem aqui as referidas para os panos cabo-verdianos. Mas há designações específicas guineenses: pano lanceado, de padrão simples, por exemplo, xadrez, que requer poucos liços[8] e dispensa a presença de um ajudante; pano frisado, de fabrico complexo, com muitos liços, sendo o fabrico assistido por ajudantes.
É curioso notar que as sucessivas medidas dos governos para recuperar a tecelagem tradicional e o interesse que ela suscita entre a população criaram um novo olhar sobre os panos, cuja forma se generalizou em cortinados, toalhas de mesa, malas, saias, camisas e outras peças quotidianas. Também a internet vulgarizou motivos de panaria tradicional em muitos acessórios. Tudo isto constitui mais do mesmo desvio que tem sido imposto às peças tradicionais, as quais têm como característica principal o facto de serem únicas. Embora, deste modo, a tradição passe a estar mais presente, em múltiplos suportes, e não seja esquecida.

6.Máscaras e Marionetes do Mali

Dadas as circunstâncias particulares da nossa História, em Portugal conhecemos melhor países como a Guiné e Moçambique, pelo que se justifica uma breve introdução sobre o Mali. A República do Mali fica no oeste do continente africano e faz fronteira com a Argélia (norte), o Niger (este), o Burkina Faso (sul), a Costa do Marfim (sul), a Guiné (sudoeste), o Senegal e a Mauritânia (ambos a oeste). A capital é Bamako, tem uma superfície de 1 240 000 km2, 11 130 000 habitantes (os malianos) e a língua oficial é o francês. As religiões predominantes são o islamismo e o animismo. O regime político é parlamentar, o Presidente da República é o Chefe do Estado e do Governo, eleito por sufrágio directo, por cinco anos. Existe um órgão legislativo que é a Assembleia Nacional com 129 deputados, eleitos por cinco anos.
O país situa-se numa zona seca e a agricultura cobre menos de 2% da sua superfície total. Cultiva-se o arroz, o milho, o amendoim, o algodão, a cana-de-açúcar e verduras. Pratica-se a criação de gado e a pesca, cujos bens se exportam para a Costa do Marfim e para a Guiné, especialmente. A indústria é pouco desenvolvida e está concentrada na capital, abrangendo áreas como os textéis, o sector alimentar, os químicos, o tabaco, a mecânica e o calçado. Há ainda recursos como o ouro e sal-gema, retirados das minas. As comunicações pouco desenvolvidas dificultam o crescimento económico. O país é um dos mais pobres do Mundo, tendo uma balança comercial constantemente deficitária e um largo endividamento externo. Depende, portanto, de ajudas internacionais[9].

O Mali, obviamente, tem a sua história e as suas tradições. Têm elas expressão no Museu Nacional de Etnologia em marionetes que tanto representam figuras humanas como animais. Entre aquelas que representam animais temos, por exemplo, antílopes, macacos, serpentes, búfalos e outras feras indefiníveis, por vezes acompanhadas por um caçador. As marionetes humanas são caçadores, anciãos – cuja importância social é expressa, ou cujos defeitos são acentuados, como a má-língua –, ou simplesmente pessoas que usam vestuário típico. As cenas de caça esculpidas em madeira ou as cabeças de animais são o reflexo de uma paisagem intocada, que vive ao ritmo natural e primário da Natureza e, quando não reconstituem histórias ouvidas ou presenciadas, são a expressão de um imaginário cultural.
As figuras humanas revestem-se essencialmente de importância ritual e são usadas em cerimónias, simbolicamente. Cèkòròba, por exemplo, é o grande ancião que representa o tempo antigo, a tradição como saber orientador da vida. Porém, estas marionetes podem também ter um objectivo crítico, ainda que não percam a carga simbólica: o velho maldizente da região de Ségou é não só alguém em quem o artista pense quando concebe a peça, mas talvez também aquele que ficou azedo em vez de sábio. Ou então, dizemos nós, é alguém que lamenta o desprezo com que têm sido tratados os valores antigos, desde que a vida moderna e os seus costumes têm destruído ou deixado esquecer o património tradicional e cultural, esse acervo único dos povos.

7.Final do dia

O pensamento invariável no final do dia é que vale a pena ver, conhecer e aprender com uma cultura tão diferente da nossa, ocidental, europeia e portuguesa. É, sem dúvida, importante aquilo que cada um absorve para si de uma tradição diferente, mas é ainda mais importante saber que não vivemos sós no Mundo, que há mais para além do que vemos. A grande lição a retirar é a da tolerância: nenhuma mentalidade, tradição, cultura no Mundo se pode arrogar superior a outras; mas o contacto pode favorecer a conservação das mesmas e reforçar a admiração e a amizade entre os povos que convivem nesta grande casa que é o Planeta Terra. Diz na Enciclopédia Meridiano-Fischer de Etnologia: “As antigas designações, inteiramente inadequadas, de «bárbaros» ou «selvagens» desapareceram, felizmente, não só da terminologia científica, mas também da linguagem corrente. Não existem selvagens. Mais ainda: do ponto de vista etnológico não existem povos «sem cultura», nem tão pouco povos «culturalmente pobres».”[10] Só existem diferenças que, mais do que separar-nos, deviam unir-nos, através do respeito devido ao espaço a que cada um de nós tem direito.

Notas:
[1] Do site do Museu Nacional de Etnologia: http://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/Museu.html.
[2] Etnologia (Enciclopédia Meridiano Fischer), Editora Meridiano, 1972, p.7.
[3] Ibidem.
[4] Neste sentido, recordem--se as recolhas que fizeram J.L. de Vasconcellos, Arruda Furtado, Rocha Peixoto,etc., em Portugal.
[5] Urzela: espécie de líquen tintorial que fornece uma cor azul-violácea.
[6] Índigo: matéria corante de cor azul escura, ligeiramente violácea, extraída de diversas plantas tropicais.
[7] Anil: cor azul extraída do índigo.
[8] Liço: Cada um dos fios de metal entre dois liçaróis (travessas que seguem os liços do tear), através dos quais passa a urdidura de tear.
[9] Nova Enciclopédia Larousse, vol.15, Círculo de Leitores, 1998, pp.4442-4443; Lexicoteca – Moderna Enciclopédia Universal, vol.12, Círculo de Leitores, pp.172-173.
[10] P.7.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Rodrigo Paganino (1835-1863)


É infelizmente uma verdadeira multidão a dos escritores portugueses esquecidos e cujo interesse se não esgotou no seu tempo. Outras figuras de grande mérito e relevo acabaram por eclipsar os seus contemporâneos, quiçá menos profundos ou habilidosos, mas de grande valor para compreender o panorama histórico da literatura do país. Almeida Garrett (1799-1854), Eça de Queiroz (1845-1900), Camilo Castelo Branco (1825-1890), Cesário Verde (1855-1886) e outros notáveis monopolizaram os gostos contemporâneos e até no ensino secundário da Literatura Portuguesa se verificava há uns anos o curioso paradoxo de estes escritores relegarem para a sombra outros de primeira categoria, como Alexandre Herculano (1810-1877) e António Nobre (1867-1900). A propósito do caso particular dos autores secundários do Pré-Romantismo, disse a Doutora Zenóbia C. Moreira: “... alguns estudiosos do Pré-Romantismo, como Edmond Estève e Paul von Thieghem são unânimes na defesa da importância das obras secundárias para o melhor conhecimento dessa parcela da literatura. Este último declara, no prefácio de uma de suas obras acerca do assunto, que para melhor se compreender este estilo literário não se pode negligenciar o testemunho de um escritor secundário, visto que este «é precioso para identificar um estado de espírito colectivo»[1]. Edmond Estève vai mais longe em sua defesa ao estudo das obras secundárias, na convicção de que, «se não as conhecermos, será mais difícil perceber o que virá depois»[2], visto que os escritores românticos «se alimentaram de toda uma literatura inferior, esquecida desde há muito, e de que se encontra a influência, o rasto e por vezes retalhos nas obras dos maiores deles»[3].”[4]

É neste sentido que aqui vamos falar de Rodrigo Paganino. Nascido em Lisboa a 2 de Agosto de 1835, frequentou a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e em 1857 foi nomeado subdelegado técnico do Conselho de Saúde, “em que prestou relevantes serviços por ocasião da epidemia da febre amarela e foi condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre-e-Espada pela coragem e dedicação com que assistira aos doentes.”[5] A Câmara Municipal de Lisboa também lhe atribuiu uma medalha por estes trabalhos. Dedicou uma boa parte do seu tempo à escrita e colaborou em muitos periódicos, como “O Progresso”, “A Opinião”, “O Panorama”, “A Revista de Lisboa”, “Arquivo Pitoresco”, “A Ilustração Luso-Brasileira”, “A Gazeta Médica de Lisboa”, etc. Foi fundador do “Jornal de Belas Artes”, em 1857, com Sequeira Barreto, e do “Arquivo Universal – Revista Hebdomadária”, com Silveira da Mota e António Pedro de Carvalho, e aqui publicou alguns artigos sob o nome “Pedro Botelho”. Diz João Gaspar Simões, estudioso da literatura portuguesa e biógrafo de E. De Queiroz: “Muito pobre, não limitava a sua actividade ao exercício da profissão médica: escrevia também, colaborando nas gazetas, traduzindo peças e inclusivamente fundando o citado “Arquivo Universal”, a revista onde publicará os seus contos.”[6]

Entre o que publicou, encontram-se os seguintes escritos:

Relatório Apresentado ao Conselho de Saúde Pública (este publicado na “Gazeta Médica de Lisboa, na qualidade de subdelegado técnico e clínico desse Conselho no bairro de Alfama, por altura da epidemia de febre amarela), 1858;
Contos do Tio Joaquim (de que falaremos adiante), 1861;
Os Dois Irmãos (drama em 4 actos, representado no Teatro D. Maria II em 1862), 1862;
Colaboração vária em periódicos e traduções de peças de teatro.

Paganino conviveu com os literatos da sua época, nomeadamente com Alexandre Herculano e com Bulhão Pato (1829-1912), que lhe dedica uma parte do seu livro de memórias “Sob os Ciprestes”.

Uma doença nos pulmões, provavelmente o início da tuberculose, fá-lo mudar-se para os arredores de Lisboa, à procura de um local saudável. “A doença levara o escritor para o Poço do Bispo, nessa altura nos arredores da cidade, e nos arredores da cidade, em Carnide, onde acaba por falecer, localiza ele, possivelmente, a quinta onde priva com o Tio Joaquim.”[7] Pode ser autobiográfico o primeiro parágrafo dos “Contos do Tio Joaquim”: “Ha de haver dez annos proximamente, fui passar o inverno a uma quinta, pouco distante de Lisboa; porque, segundo diziam, corria perigo de vida, se não mudasse de ares quanto antes. O campo é sempre bello. Cada edade do anno imprime-lhe uma feição, differente embora, mas formosa sempre: e o inverno, apezar da sua fria nudez, tem attractivos, como os que nos fazem amar muitas estatuas antigas, em que a falta de roupas mais realça a magestade.”[8]

É esta, de resto, a mais conhecida obra de Rodrigo Paganino: a simpática colectânea de histórias “Contos do Tio Joaquim”. O narrador, à distância de 10 anos, conta como foi que conheceu o Tio Joaquim, trabalhador no campo e exímio contador de histórias, a que saborosamente e sem aborrecer acrescentava uma moral, uma lição para a vida, que todos ouviam, por vir de um ancião[9].

João Gaspar Simões liga estes contos a uma tradição europeia e também portuguesa de contar histórias. Segundo esta teoria, Paganino, dizendo-se seguidor de Souvestre e Lamartine[10], vai também pegar na tradição contista portuguesa onde ela tinha ficado há 200 anos atrás, em Fernandes Trancoso e nos seus “Contos e Histórias de Proveito e Exemplo”[11]. “Embora, realmente, vindos a lume numa das muitas revistas que então se publicavam no nosso país, os contos que constituem o recheio do referido livro pertencem mais ao género da narrativa oral que ao género da narrativa escrita, sobretudo ao género de narrativa que nessa altura maior número de adeptos contava no País: o folhetim. (...) Embora de acordo com o pendor então corrente em certo tipo de literatura particularmente cultivada em França (...) o certo é que a obra do autor de “Os Contos do Tio Joaquim” retoma uma tradição portuguesa muito antiga. Para nós, Paganino, neste seu livro, está mais perto de Trancoso que do autor de “Au Coin du Feu”. Porque não dizê-lo? Está mesmo mais perto do “Decameron”[12] que de qualquer outra obra moderna. Aliás, tanto os Contos e Histórias de Proveito e Exemplo do nosso Boccaccio quinhentista[13], como o “Patrañuelo” de espanhol Timoneda[14], obedecendo ao mesmo esquema – a oralidade das histórias contadas por uma ou mais personagens da própria ficção em que se englobavam os contos compendiados –, fazem remontar a arte do conto à suas mais antigas origens.”[15]

A singeleza dos temas e do estilo, caros a um romantismo “etnográfico” que procurava no povo e no seu imaginário as origens da nacionalidade[16] fazem de Paganino ainda um escritor do Romantismo, mas também o aproximam de experiências posteriores, que aliás terá influenciado[17], já a entrar no Realismo, nos assuntos do quotidiano, nas preocupações e problemas que sem grandezas constituem o cerne dos problemas humanos.

Rodrigo Paganino faleceria a 22 de Setembro de 1863, em Carnide.

Dos “Contos do Tio Joaquim” há uma edição moderna (2003), da Planeta Editora.


[1] Em francês no original. A cit. vem da obra «Le Préromantisme ».
[2] Em francês no original.
[3] Em francês no original.
[4] “O Lirismo Pré-Romântico da Viscondessa de Balsemão”, Edições Colibri, 2000, pp.13-14.
[5] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 19, p.957.
[6] Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa das origens ao século XX, Publicações D. Quixote, 1987, p.547.
[7] Ibidem, p.549.
[8] António Maria Pereira (ed.), p.13. É desta edição (2ª) que vem a imagem do escritor, acima reproduzida.
[9] João Gaspar Simões, ibidem.
[10] Alphonse de Prât de Lamartine (1790-1869), escritor francês do Romantismo.
[11] Gonçalo Fernandes Trancoso, escritor português do século XVI, publicou a referida obra pela primeira vez c.1575-76. Já devia ter falecido por 1596.
[12] O "Decameron" é um conjunto de contos do italiano Gionanni Boccaccio (1313-1375), que descrevem a vida no século XIV, com humor.
[13] O Boccaccio quinhentista é o referido Gonçalo Fernandes Trancoso. São de evitar estas comparações, ainda que expressivas, porque todos os escritores são únicos e mesmo os que adaptam estilos de outros não podem ser conhecidos senão pelo seu nome.
[14] Juan de Timoneda (c.1490-1583), escritor e livreiro espanhol, compilou contos com base nos italianos.
[15] Ibidem, pp.545-546.
[16] Recorde-se o trabalho de Almeida Garrett, no “Romanceiro”.
[17] Referimo-nos a Júlio Dinis, que ficou encantado com os “Contos do Tio Joaquim”, João Gaspar Simões, ibidem, p.549.