segunda-feira, 6 de abril de 2009

Gervásio Lobato (1850-1895)



Não era tão analítico como Eça de Queiroz, não era tão pitoresco quanto Camilo, nem azedo como Fialho. As novelas que dele ficaram mais conhecidas lêem-se como se se observasse a vida, toda espontânea; os diálogos – invariavelmente cómicos – são vivos e dinâmicos; as histórias são irónicas e falam, com leveza e espírito crítico, da burguesia lisboeta do final do século XIX, das suas aspirações, dos seus defeitos, das tramas para salvar as aparências. Gervásio Lobato, que foi segundo oficial da Secretaria do Reino, escritor, jornalista e professor de declamação na escola dramática do Conservatório de Lisboa, nasceu em Lisboa a 23 de Abril de 1850. Com o fim de chegar a diplomata, tirou o Curso Superior de Letras e a cadeira de Direito Internacional da Escola Naval, mas acabou por fazer carreira no campo das letras, área em que conseguiu o respeito do público. A vocação já vinha da juventude: aos 15 anos fundou, com alguns condiscípulos, “A Voz Académica”, jornal literário, depois publicou um folhetim no “Diário Popular” e passou a colaborar noutros periódicos, a saber: “Braz Tizana”, “Gazeta de Portugal”, “Gazeta Literária”, “Recreio”, “Jornal da Noite” (fundado por si, por Teixeira de Vasconcelos e outros), “Diário Ilustrado”, “Progresso”, “Correio da Noite”, “Século”, “Diário de Notícias”, “Ocidente”, etc. Ainda fundou, com Pinheiro Chagas, “A Discussão”, depois “Diário da Manhã” e, mais tarde, “Correio da Manhã” e “O Contemporâneo”, com Salvador Marques e Sousa Bastos. Dedicou-se à escrita dramática e escreveu “O Rapto de um Noivo”, com Maximiliano de Azevedo, comédia em 1 acto que foi representada no Teatro D. Maria II. Depois foram duas comédias para o Ginásio: “No Campo” e “Debaixo da Máscara” (1873). Seguiram-se numerosas peças originais ou traduzidas e adaptadas, representadas em todos os teatros portugueses: “As Noivas do Eneias” (1892), “Medicina de Balzac”, “Sua Excelência” (1884), “O Comissário de Polícia” (1890), etc.; algumas operetas e também novelas, de que falaremos adiante. Por altura da representação d’ “O Festim de Baltasar” (1892), com fins caritativos, foi agraciado pelo Rei com o oficialato da Ordem de Santiago. Lêem-se ainda muito bem actualmente as suas novelas e romances: “A Comédia de Lisboa” (1878), “A Primeira Confessada” (1881), Os Invisíveis de Lisboa” (1886-1887), “Os Mistérios do Porto” (1890-1891), “A Comédia do Teatro”, “O Grande Circo” (1893). “Nelas (comédias e farsas) e nos romances que escreveu se faz o processo bem-humorado, mas certeiro, da pequena e média burguesia lisboeta do fim do século, captada nos seus ridículos e manias, na sua vacuidade e mesquinhez de ambições políticas e mundanas.”[1] É ainda célebre (talvez a mais célebre) a sua novela “Lisboa em Camisa” (1890), sobre uma família burguesa de Lisboa. É uma descrição bem-humorada de uma certa classe burguesa que aspira a voos mais altos e se fica invariavelmente pelos negócios comezinhos, pelo “parecer”, já que lhe falta a fibra autêntica dos homens dinâmicos.
Gervásio Lobato faleceu a 26 de Maio de 1895.[2]

Excerto da novela "Lisboa em Camisa":

“O Sr. Justino Antunes tinha um grande desgosto de não ser pai.
Casara havia quatro anos, no Algarve, com uma menina de dezoito anos, filha do administrador do concelho, uma menina muito interessante, muito prendada, que tocava piano que era um encanto, bordava a oiro, e cantava a Traviata em italiano. Era muito feliz com sua mulher, dava-se muito bem com ela, fora por intermédio do seu sogro que alcançara o diploma de membro honorário da Associação dos Arqueólogos e Arquitectos Portugueses, tinham-lhe prometido um lugar de segundo oficial no ministério das obras públicas, e o ser sócio correspondente da Academia de Ciências, mas a respeito de filhos nada.
(...)
O Sr. Antunes alojou-se, pois, com sua família, a mulher, a irmã, o sobrinho e uma criada velha e antiga, a Alexandrina, num quarto andar, do lado dos pares, da rua dos Fanqueiros, portas fronteiras com o conselheiro Torres, que tinha muitas filhas, muito divertidas, que se começaram logo a dar muito com a Angélica e com a D. Josefina.
Tomou posse do seu emprego e, e às Quintas-feiras e aos Domingos, para distrair a família, levava-a ao Museu do Carmo, de que, já dissemos era sócio.
Ali, havia uma coisa que o fazia cismar. Onde demónio estariam umas pedras muito antigas, que ele mandara do Algarve, e que lhe tinham valido o seu diploma?
-Já sei, disse ele um dia, tocado de uma ideia súbita, sorrindo, triunfante, a sua mulher e às meninas Torres, a quem mais uma vez arrastara ao museu à procura das suas pedras, já sei, naturalmente os monumentos que mandei, como eram muito preciosos foram para o paço.
A menina Sabina Torres, a filha mais nova do conselheiro, que não tinha papas na língua, e que ganhara fama de espirituosa descompondo toda a gente, já farta do museu até aos olhos, disse enfastiada ao sr. Antunes:
-Mas que monumentos mandou o senhor, algumas pirâmides?
-Não senhora, monumentos chamam-se a todas as pedras que...
-Ora adeus! Pedras são boas para fazer paredes.
-Exactamente, mas com as pedras que eu mandei, fazem-se os alicerces de um palácio sublime – a história.
E Antunes, achando lá dentro esta bela frase, teve o cuidado de se ir chegando para junto de um guarda, e de a dizer quase a gritar para que ele a ouvisse bem.
(...)
Antunes, adivinhando a admiração no rosto inteligente do guarda, atreveu-se a perguntar-lhe com um sorriso:
-O meu amigo está aqui há muito tempo?
-Há três horas, a porta abriu-se às dez, ainda não é uma.
-Não é isso: se está aqui empregado há muito tempo.
-Há sete anos...
-Então deve lembrar-se de umas pedras que vieram do Algarve... há cinco anos.
E começou a fazer uma larga e minuciosa descrição das suas pedras.
-Vinham também uns quinze ou vinte tijolos muito queimados, coisa que tinha servido de fornalha.
-Exactamente, exactamente, eram os tijolos, decerto, em que os árabes invocavam...
-Lembro-me perfeitamente... estiveram aí a um canto muito tempo.
-Ah! murmurou todo lisonjeado o Antunes, olhando com uns ares superiores para a Sabina.
-E depois foram...
-Para o paço, é o que eu dizia...
-Nada: quando se fez a escada nova, foi preciso pedras, e elas lá foram; olhe, estão ali por debaixo daqueles degraus.
Antunes fez-se pálido.
-Não foram para os alicerces da história, disse, com grandes gargalhadas trocistas, a menina Torres, foram para os alicerces da escada.
Antunes lembrou que nesse dia tocava a charanga de lanceiros no Passeio Público, e que não havia nada mais bonito que uma charanga.
E nunca mais levou a família ao Museu do Carmo.”

In, Lisboa em Camisa, Vega, 1997, pp.15-19.
Notas:
[1] Dicionário Cronológico dos Autores Portugueses, vol. II, Publicações Europa-América, p.336.
[2] A principal fonte desta biografia foi a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.15, pp.342-343.

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