domingo, 5 de abril de 2009

Visita ao Museu Nacional de Etnologia (2006)

1.Visita ao Museu Nacional de Etnologia

O texto que agora se apresenta é o de uns breves apontamentos que tirámos durante uma visita ao Museu Nacional de Etnologia, em Maio de 2006. Na altura, o tempo de que dispúnhamos e a observação demorada das peças apenas permitiu a impressão cuidada de duas colecções: a da panaria guineense e cabo-verdiana e a das máscaras do Mali. Acrescentamos hoje, porém, alguns dados indispensáveis para a contextualização das notas, nomeadamente sobre a criação do M.N.E. Apesar do tempo que já passou, achámos que valia a pena partilhar este escrito, quanto mais não fosse para tentar despertar a curiosidade de visitar o Museu.

2.O Museu

“O Museu Nacional de Etnologia é indissociável da história da antropologia portuguesa. Nele se vem a projectar uma dimensão fundamental do trabalho dos pioneiros desta disciplina no país. A partir do Centro de Estudos de Etnologia, que dirige desde 1947, Jorge Dias e aqueles que o irão acompanhar nos anos subsequentes, Margot Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, entre outros, iniciam uma pesquisa extensiva e continuada sobre os elementos da cultura material que, anos mais tarde, viriam a ser igualmente recolhidos para constituir as colecções do museu. O trajecto daquele antropólogo vai conduzi-lo e a Margot Dias ao norte de Moçambique onde, em sucessivos períodos de trabalho de campo, com início em 1957, vão construir uma sólida etnografia sobre o povo Maconde. O resultado parcial daquela investigação será objecto de uma exposição realizada em Lisboa em 1959 e é neste contexto que surge a intenção explícita da criação de um Museu de Etnologia. Em 1965 o Museu é criado com o ambicioso programa de representar as culturas dos povos do globo não se restringindo, pois, nem a Portugal nem aos domínios ultramarinos sob a sua administração.”[1] O acervo do M.N.E. é hoje formado por cerca de 30.000 peças, que procuram responder ao objectivo de universalidade. Assim, entre elas estão alfaias agrícolas portuguesas – algumas a cair em desuso, por causa da modernização na agricultura –, uma colecção de olaria que cobre todo o País, uma colecção de máscaras e marionetas do Mali, vários objectos de povos da Amazónia, conjuntos também de Angola, Moçambique, Timor e outras. Há uma preocupação notória de alternar peças propriamente ditas com extractos de filmes ou fotografias, que expliquem e completem o significado e a utilidade daquelas.
O Museu tem uma biblioteca especializada na área da Antropologia, com títulos de estudos, teses e revistas, para acesso dos interessados em aprofundar os seus conhecimentos nestas matérias.
Há um Serviço Educativo ligado ao M.N.E. que visa dar a conhecer as suas colecções ao público, através de visitas guiadas, preparação de visitas com docentes, publicação de obras sobre o acervo e espaços lúdicos e culturais para os mais jovens.

3.Etnologia

Entende-se por Etnologia o estudo cultural do Homem. Neste ramo do saber se abordam a técnica e as realizações materiais, a organização social, a religião, a magia, a arte “e, sob certos aspectos, também, a ciência”, entendidas como “unidade funcional”, ou seja, partes inseparáveis do conjunto de conhecimentos e valores que fazem uma cultura humana[2]. Alguns cientistas distinguem-na de Etnografia. Esta é a recolha e descrição de elementos vários e aquela a comparação das culturas, através da sua evolução histórica. A Etnografia fornece a descrição de costumes e tradições dos povos à Etnologia. Esta constrói teorias e leis com base nelas. Em princípio, os povos que interessam à Etnologia são aqueles que vivem com meios técnicos elementares, ou, também se diz, em “estado natural”. Os esquimós, algumas tribos africanas ou americanas, por exemplo, inserem-se nessa classificação. As mesmas matérias referentes aos chamados povos “mais avançados” tecnologicamente são estudadas por ciências à parte, como “a Orientalística, a Indologia, a Sinologia”[3] e também a História. Porém, é de crer que estes povos também podem ter as suas etnologia e etnografia, dadas as suas produções mais primitivas – o que não quer dizer desaparecidas – presentes ainda nas zonas rurais, desde alfaias, até à poesia popular, matérias quase intocadas e em contacto quase directo com tempos muito antigos[4].
As peças que adiante descrevemos são, portanto, manifestações materiais da cultura e da mentalidade, longamente construídas pelos povos inseridos nos seus territórios, como forma espontânea de entender o ambiente e de lhe responder. Obviamente, ambientes diferentes originam respostas diferentes: daí a diversidade de culturas.
Não tivemos oportunidade de acompanhar a visita guiada que se fez à Sala das Alfaias de Portugal, mas visitámos a Sala dos Panos e a Sala das Marionetes.

4.Através dos Panos

Esta sala expõe uma colecção de panaria guineense e cabo-verdiana do Museu Nacional de Etnologia, recolhida, na maioria, por António Carreira entre 1960 e 1970.
Os panos, no contexto tribal africano, são bens que definem o prestígio de quem os usa. Os panos assinalam os ciclos de vida, definem as formas das relações sociais e formalizam os seus momentos cerimoniais e rituais.
As meadas ou os panos são tradicionalmente tingidos com pigmentos vegetais, como a urzela[5], o índigo[6] ou o anil[7], que permitem obter vários tons de azul.
No século XVI, Portugal, já na senda dos Descobrimentos, e apercebendo-se do valor das matérias-primas e da panaria, impôs restrições comerciais visando o controlo exclusivo da exploração e comercialização do algodão e dos panos. Isto deu origem ao contrabando, praticado entre os autóctones e os tripulantes dos navios. A partir dos séculos XVIII e XIX, vários factores como as secas, a ascendente influência económica estrangeira, a abolição da escravatura, a inovação tecnológica e a circulação do pano industrial a um custo inferior, fizeram com que decrescesse o cultivo de algodão e, consequentemente, se produzisse menos panaria tradicional. Actualmente, verifica-se o uso crescente de meadas de algodão industriais ou de fio sintético, às vezes importadas de outros países, mais acessíveis em custo e fáceis de trabalhar. Apesar deste claro benefício, ainda para mais para carteiras pobres, sente-se que é perdida uma parte da tradição na confecção actual dos panos. Se já não são produzidos desde a plantação até à conclusão do tecido, apaga-se uma parte essencial do ciclo de vida de uma arte inimitável, o que é uma desvantagem da vida moderna. Tem-se vindo a substituir o que é tradicional, justificando isso pelo baixo custo ou pela rapidez de confecção. Apesar de algumas medidas proteccionistas dos governos, a tradição não é ainda mantida e protegida essencialmente senão pelos interessados. E só tem verdadeiro valor tradicional a peça, qualquer que seja, que respeite todos os passos da criação primitivos.
Os panos expostos são, no geral, coloridos e têm motivos variados que vão desde a expressão mais tradicional, a temas modernos. Alguns têm como tema um animal representativo, como a jibóia, outros têm barcos – como aqueles que no século XV foram vistos pela primeira vez em África –, e há até a expressão de aspirações políticas recentes – de facto, um dos panos tem tecida a imagem de Amílcar Cabral, datado de 1996 e recolhido na Guiné-Bissau.

5.Nota sobre as Designações dos Panos

As definições dos panos derivam da sua origem, tipo de confecção, motivos decorativos ou modo de uso.
Ao pano de Cabo Verde chama-se pano di terra, alusão à origem. Este pode ainda ser pano d’obra, se tiver um padrão complexo e minucioso; ou pano bicho se tiver por motivo um animal.
Os panos guineenses também têm designações. Valem aqui as referidas para os panos cabo-verdianos. Mas há designações específicas guineenses: pano lanceado, de padrão simples, por exemplo, xadrez, que requer poucos liços[8] e dispensa a presença de um ajudante; pano frisado, de fabrico complexo, com muitos liços, sendo o fabrico assistido por ajudantes.
É curioso notar que as sucessivas medidas dos governos para recuperar a tecelagem tradicional e o interesse que ela suscita entre a população criaram um novo olhar sobre os panos, cuja forma se generalizou em cortinados, toalhas de mesa, malas, saias, camisas e outras peças quotidianas. Também a internet vulgarizou motivos de panaria tradicional em muitos acessórios. Tudo isto constitui mais do mesmo desvio que tem sido imposto às peças tradicionais, as quais têm como característica principal o facto de serem únicas. Embora, deste modo, a tradição passe a estar mais presente, em múltiplos suportes, e não seja esquecida.

6.Máscaras e Marionetes do Mali

Dadas as circunstâncias particulares da nossa História, em Portugal conhecemos melhor países como a Guiné e Moçambique, pelo que se justifica uma breve introdução sobre o Mali. A República do Mali fica no oeste do continente africano e faz fronteira com a Argélia (norte), o Niger (este), o Burkina Faso (sul), a Costa do Marfim (sul), a Guiné (sudoeste), o Senegal e a Mauritânia (ambos a oeste). A capital é Bamako, tem uma superfície de 1 240 000 km2, 11 130 000 habitantes (os malianos) e a língua oficial é o francês. As religiões predominantes são o islamismo e o animismo. O regime político é parlamentar, o Presidente da República é o Chefe do Estado e do Governo, eleito por sufrágio directo, por cinco anos. Existe um órgão legislativo que é a Assembleia Nacional com 129 deputados, eleitos por cinco anos.
O país situa-se numa zona seca e a agricultura cobre menos de 2% da sua superfície total. Cultiva-se o arroz, o milho, o amendoim, o algodão, a cana-de-açúcar e verduras. Pratica-se a criação de gado e a pesca, cujos bens se exportam para a Costa do Marfim e para a Guiné, especialmente. A indústria é pouco desenvolvida e está concentrada na capital, abrangendo áreas como os textéis, o sector alimentar, os químicos, o tabaco, a mecânica e o calçado. Há ainda recursos como o ouro e sal-gema, retirados das minas. As comunicações pouco desenvolvidas dificultam o crescimento económico. O país é um dos mais pobres do Mundo, tendo uma balança comercial constantemente deficitária e um largo endividamento externo. Depende, portanto, de ajudas internacionais[9].

O Mali, obviamente, tem a sua história e as suas tradições. Têm elas expressão no Museu Nacional de Etnologia em marionetes que tanto representam figuras humanas como animais. Entre aquelas que representam animais temos, por exemplo, antílopes, macacos, serpentes, búfalos e outras feras indefiníveis, por vezes acompanhadas por um caçador. As marionetes humanas são caçadores, anciãos – cuja importância social é expressa, ou cujos defeitos são acentuados, como a má-língua –, ou simplesmente pessoas que usam vestuário típico. As cenas de caça esculpidas em madeira ou as cabeças de animais são o reflexo de uma paisagem intocada, que vive ao ritmo natural e primário da Natureza e, quando não reconstituem histórias ouvidas ou presenciadas, são a expressão de um imaginário cultural.
As figuras humanas revestem-se essencialmente de importância ritual e são usadas em cerimónias, simbolicamente. Cèkòròba, por exemplo, é o grande ancião que representa o tempo antigo, a tradição como saber orientador da vida. Porém, estas marionetes podem também ter um objectivo crítico, ainda que não percam a carga simbólica: o velho maldizente da região de Ségou é não só alguém em quem o artista pense quando concebe a peça, mas talvez também aquele que ficou azedo em vez de sábio. Ou então, dizemos nós, é alguém que lamenta o desprezo com que têm sido tratados os valores antigos, desde que a vida moderna e os seus costumes têm destruído ou deixado esquecer o património tradicional e cultural, esse acervo único dos povos.

7.Final do dia

O pensamento invariável no final do dia é que vale a pena ver, conhecer e aprender com uma cultura tão diferente da nossa, ocidental, europeia e portuguesa. É, sem dúvida, importante aquilo que cada um absorve para si de uma tradição diferente, mas é ainda mais importante saber que não vivemos sós no Mundo, que há mais para além do que vemos. A grande lição a retirar é a da tolerância: nenhuma mentalidade, tradição, cultura no Mundo se pode arrogar superior a outras; mas o contacto pode favorecer a conservação das mesmas e reforçar a admiração e a amizade entre os povos que convivem nesta grande casa que é o Planeta Terra. Diz na Enciclopédia Meridiano-Fischer de Etnologia: “As antigas designações, inteiramente inadequadas, de «bárbaros» ou «selvagens» desapareceram, felizmente, não só da terminologia científica, mas também da linguagem corrente. Não existem selvagens. Mais ainda: do ponto de vista etnológico não existem povos «sem cultura», nem tão pouco povos «culturalmente pobres».”[10] Só existem diferenças que, mais do que separar-nos, deviam unir-nos, através do respeito devido ao espaço a que cada um de nós tem direito.

Notas:
[1] Do site do Museu Nacional de Etnologia: http://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/Museu.html.
[2] Etnologia (Enciclopédia Meridiano Fischer), Editora Meridiano, 1972, p.7.
[3] Ibidem.
[4] Neste sentido, recordem--se as recolhas que fizeram J.L. de Vasconcellos, Arruda Furtado, Rocha Peixoto,etc., em Portugal.
[5] Urzela: espécie de líquen tintorial que fornece uma cor azul-violácea.
[6] Índigo: matéria corante de cor azul escura, ligeiramente violácea, extraída de diversas plantas tropicais.
[7] Anil: cor azul extraída do índigo.
[8] Liço: Cada um dos fios de metal entre dois liçaróis (travessas que seguem os liços do tear), através dos quais passa a urdidura de tear.
[9] Nova Enciclopédia Larousse, vol.15, Círculo de Leitores, 1998, pp.4442-4443; Lexicoteca – Moderna Enciclopédia Universal, vol.12, Círculo de Leitores, pp.172-173.
[10] P.7.

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