Não são pacíficos os conceitos exactos de “dialecto” e “falares”. Uma língua estabelece uma unidade em vários sentidos num determinado território, mas apresenta frequentemente numerosas variações. A essas variações se chama “dialectos” ou “falares”. Autores como José Leite de Vasconcellos e Luís Lindley Cintra dizem que dialecto é a variedade de uma língua verificada numa região[1] e reservam os “falares” para a especificidade linguística de uma localidade[2]. Matos Silva e Paiva Boléo preferem chamar “falares” aos “dialectos”. Não nos cabe neste espaço adiantar mais a este respeito. Os conceitos podem ser aprofundados e debatidos em obras da especialidade. Para o efeito, apenas deixaremos estas noções sustentadas pelos dois cientistas. A localização geográfica, com todos os contactos que permite, é uma das principais origens das variações na mesma língua. Dela decorrem a mentalidade, a cultura, a tecnologia e o evoluir do falar, adaptado à comunidade humana que serve. A língua portuguesa demonstra uma considerável riqueza. “Na área vastíssima e descontínua em que é falado[3], o português apresenta-se como qualquer língua viva, internamente diferenciado em variedades que divergem de maneira mais ou menos acentuada quanto à pronúncia, à gramática e ao vocabulário.”[4] Em Portugal, que agora nos interessa, as maiores diferenças vêem-se nos sotaques (pronúncia) e nos regionalismos (vocabulário)[5]. Deve-se a José Leite de Vasconcellos, etnógrafo, a primeira proposta de classificação dos dialectos portugueses, em 1893, criando assim, nas palavras de Lindley Cintra, a “dialectologia científica” no nosso país[6]. Porém, data de muito antes a noção destas diferenças. É com base num conjunto de referências e de vocabulário regional eminentemente beirão que alguns autores defendem que está aí, no centro de Portugal, a terra do dramaturgo Gil Vicente (c.1465-depois de 1536)[7], o que revela uma tipicidade linguística ainda no século XVI. No mesmo sentido, uma nossa gramática antiga (1536) diz: “... os da Beira têm umas falas e os do Alentejo outras.”[8] Actualmente, há perfeita consciência das diferenças regionais do português e alguns sotaques são bem conhecidos. São estas mais um elemento de identidade regional, ao lado dos trajos, da gastronomia e de outras tradições. A língua e as suas variações são inseparáveis das populações que servem e são o reflexo da complexidade social, estão associadas à vida das pessoas, ao trabalho, aos divertimentos e aos ritos (religiosos ou outros). Actualmente, é com algum desgosto que vemos desaparecer estes elementos a favor de uma globalização uniformizadora que não pode entender o valor das identidades nem respeitá-lo. A televisão, por exemplo, veicula quase integralmente o português padronizado, chamado “português padrão europeu”, que “segue a norma ou conjunto dos usos linguísticos das classes cultas da região Lisboa-Coimbra”[9]. O trajo popular já quase só pertence aos grupos folclóricos e a alguns idosos que não deixaram os costumes antigos. E o património dialectal pode perder-se mais cedo do que seria desejável, já que a modernidade não contempla nem as antiqualhas da História nem os usos da Etnografia, tendendo a padronizar todos os aspectos da vida dos povos, a que retira o verdadeiro espírito das tradições com a sua invasão violenta, indiscriminada e vazia de significado. Só o povo pode contrariar estas tendências, cultivando, mais que nunca, a sua natureza, o seu ser português, conservando-a, estudando-a e pensando-a. A propósito das nossas pronúncias, dizia Jaime de Magalhães Lima (1859-1936), jornalista, político e literato português, “que, em determinados casos, a maneira especial de pronunciar alguns vocábulos definia muito melhor uma ideia ou um sentimento, do que o seu enunciado dentro dos padrões normalizados. Entre outras situações, o caso da velha que, ao pretender que o filho lhe ouça um conselho, em lugar de dizer “escuta filho”, suaviza o imperativo da ordem mantendo a pronúncia antiga (com um i a mais), para que assim resulte mais carinhosa e meiga a forma “escuita filho.”[10] É também neste sentido, talvez menos científico, mas mais emotivo e próximo das nossas vivências, que são importantes os trabalhos de recolha de José Leite de Vasconcellos, ou o já citado “Dialecto Alentejano”, editado pela Colibri, que descreve a pronúncia do Alentejo no início do século XX, a partir precisamente dos apontamentos daquele etnógrafo, alguns ainda inéditos. “Já de si pouco separativas, as diferenças entre (...) dialectos atenuaram-se muito mais: o padrão tinha então [pelo início do século passado] menos falantes, estava circunscrito a uma parte apenas da população de algumas cidades, não se distinguia da norma culta. (...) O padrão era inacessível à maioria dos portugueses, que podiam atravessar a vida inteira falando o dialecto aprendido dos pais e modificando-o muito pouco. Não iam à escola, não viajavam, os familiares que emigravam não regressavam mais, não ouviam rádio, nem viam televisão. As condições de conservação de um dialecto eram, assim, do egoísta ponto de vista da ciência, muito boas.”[11] A autora nomeia os agentes uniformizadores: “A escola e os meios de comunicação social foram identificados como os principais agentes da mudança. Escrever e falar “bem” passaram a ser sinónimos de português padrão. Assim se foram abandonando, pouco a pouco, os traços específicos dos diferentes dialectos e a língua passou a ser cada vez mais normalizada. Os estudos no âmbito da dialectologia são, desta forma, um contributo para mostrar que as diferenças também são salutares num mundo que tende cada vez mais para a uniformização.”[12]
Notas:
[1] Tomando como exemplo a terceira classificação dos dialectos portugueses apresentada por José Leite de Vasconcellos e publicada num volume dos “Opúsculos” (1929), a região meridional apresentaria um dialecto, ou seja, uma variação da língua-padrão (português), sendo que um dos sub-dialectos seria o alentejano, o qual ainda apresentaria três variedades: Alto, Baixo e Central.
[2] Dialecto Alentejano – contributos para o seu estudo, Manuela Florêncio, Colibri, 2ªed., Colibri, 2005, pp.16-18. A referência da nota anterior também vem daqui. A imagem reproduzida vem da capa.
[3] Os autores referem-se também às terras que constituíam o império ultramarino português e onde a língua continua a falar-se e teve evolução própria.
[4] Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 18ªedição, Edições João Sá da Costa, 2005, p.9.
[5] Os dialectos portugueses falados na Ásia e em Timor, influenciados pelas línguas nativas, terão variações mais importantes em termos de gramática, ibidem, p.23-24.
[6] Para estas referências, Dialecto Alentejano, p.16.
[7] V., por exemplo, Joaquim Ferreira, História da Literatura Portuguesa, 2ªedição, Editorial Domingos Barreira, pp.204-205.
[8] Cit. em Dialecto Alentejano, com a grafia actualizada, uma vez que a própria autora actualizou uma parte. A referida gramática é tida como a primeira entre nós e é da autoria do gramático Fernão de Oliveira (1507-depois de 1581).
[9] Nova Gramática do Português Contemporâneo, p.10.
[10] João Pequito, “A Nossa Pronúncia”, in “Voz da Minha Terra”, Ano XXXIV, nº423, p.11. Trata-se de um jornal regional do conselho de Mação, a propósito do qual o autor faz uma reflexão sobre a beleza e o significado do sotaque daquela zona. A obra em que Magalhães Lima se refere ao assunto (J. Pequito não a nomeia) será, talvez, “A Língua Portuguesa e os seus Mistérios”, 1923.
[11] Ivo Castro, Curso de História da Língua Portuguesa, 1991, cit. em “Dialecto Alentejano”, pp.84-85.
[12] Ibidem, pp.85-86.
2 comentários:
Olá Luís!
Como vês, também já passei pelo teu blogue e já li algumas das coisas que escreveste!
Obrigada pelos comentários e visitas ao Glossário :D
EP
Joana M.
É normal passarmos por um Blog onde o Luís escreve, visto que aqui encontramos a sua originalidade e criatividade ao mais alto nível. Muito Bem Louis!
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