terça-feira, 21 de outubro de 2008

Escotismo e Escutismo - duas palavras para uma ideia

(Para o Bastos)


O movimento que em Portugal se chama Escotismo ou Escutismo foi idealizado por Robert Baden-Powell (1857-1941), militar britânico, depois de verificar a popularidade do seu livro Aids to Scouting – primeiramente destinado ao exército, mas depois usado como livro de leitura nas escolas[1] – e a utilidade de formar os jovens para uma cidadania participativa, patriótica e solidária. O acampamento experimental em Brownsea com 20 rapazes no verão de 1907 demonstrou o sucesso prático da ideia. O escotismo espalhar-se-ia muito para além dos cálculos de B.P., tendo chegado a todos os continentes do Mundo.
Na prática, o que pretende ser o Escotismo? Um movimento internacional, voluntário e pedagógico, que tem por fim ajudar os jovens a crescer saudavelmente, incutindo-lhes um sentido dinâmico de responsabilidade e de fraternidade; um movimento não político, aberto a todas as pessoas sem qualquer distinção (origem, raça, credo...), caracterizado pela participação na sociedade, em especial protegendo a Natureza e auxiliando os que precisam. O movimento tem um método próprio de educação centrado na aprendizagem pela prática e no contacto com a Natureza e com as Comunidades. Os escoteiros andam uniformizados e trazem um conjunto de símbolos próprios que expressam os princípios do movimento.
Os portugueses também adaptaram a ideia desde cedo, com os primeiros escoteiros lusos em Macau, em 1911, organizados por Álvaro Mello Machado, “oficial da Marinha e governador de Macau desde 17 de Dezembro de 1910”[2]. Mais tarde, seguidas de várias tentativas efémeras de escotismo, vêm a permanecer na Metrópole as duas principais associações que, com mais ou menos actualizações, ainda hoje existem – a Associação dos Escoteiros de Portugal (1913) e o Corpo Nacional de Escutas (1923)[3]. Estas associações têm algumas diferenças importantes, desde logo em relação à religião, já que o C.N.E. é um movimento católico e a A.E.P. tem carácter interconfessional. E existe ainda a curiosa questão das denominações. Em Portugal, para os jovens que aderem ao movimento, há duas palavras identificadoras: escoteiro e escuteiro. O que aqui queremos fazer é tentar explicar a origem da diferença e a competência destes vocábulos, segundo a nossa opinião.
Em inglês, as palavras escolhidas para designar o movimento e os seus membros foram scouting e scout. No Oxford Advanced Learner’s Dictionary, de scout diz-se que é um batedor ou um membro da organização escotista que tem como objectivo o desenvolvimento do carácter dos jovens através da disciplina, das actividades ao ar livre e do serviço para a comunidade[4].
Por scout Baden-Powell entendia explorador. “Creio bem que não há rapaz que não queira servir a sua Pátria de uma forma ou doutra. Tem um meio fácil de o conseguir: é fazer-se Escuteiro. O explorador do exército (o antigo escuta) é, geralmente, como sabeis, um soldado escolhido pela sua capacidade e coragem para seguir à frente do exército, descobrir onde se encontra o inimigo, e comunicar ao comandante tudo quanto puder averiguar a seu respeito. Mas, além de exploradores de guerra, há também exploradores pacíficos – gente que em tempo de paz realiza tarefas que exigem igual coragem e engenho. São os fronteiros da civilização. Os pioneiros e caçadores de peles da América do Norte, os colonos da América do Sul, o caçadores da África Central, os exploradores e missionários espalhados pela Ásia e por todas regiões selváticas do mundo, os sertanejos e pastores da Austrália, a polícia do Canadá Setentrional e da África do Sul – são todos escuteiros da Paz, verdadeiros homens em toda a acepção da palavra, peritos na arte de explorar. Sabem viver na selva, em toda a parte se sabem orientar e, dos vestígios ou sinais mais simples e pegadas mínimas, tiram conclusões muito exactas. Sabem cuidar da saúde quando andam longe dos médicos. São fortes e ousados, estão prontos a arrostar perigos e sempre dispostos a auxiliarem-se mutuamente. Estão acostumados a trazer a vida entre as mãos e a arriscá-la sem hesitação, se com ela podem servir a sua Pátria. Privam-se de todas as suas preferências e comodidades pessoais, para se desempenharem da sua missão. A vida do fronteiro é vida magnífica, mas ninguém se pode dedicar a ela de repente, se não estiver devidamente preparado. Os que melhor se dão nela são aqueles que aprenderam a arte de exploração enquanto rapazes. A exploração é útil para qualquer modo de vida que se queira seguir. Um célebre sábio afirmou que serve de muito àquele que pretenda dedicar-se aos estudos científicos. E um médico notável mostrou que é necessário ao médico ou ao cirurgião tomar nota de pequeninos nadas, como faz o explorador, e saber interpretá-los.”[5]
A citação é extensa, mas quisemos mostrar pelas palavras do próprio Fundador o significado de scout ou explorador. O explorador começa por ser um batedor (scout) do exército, aquele que espia o inimigo, servindo-se de técnicas que o ajudam a dominar o ambiente que o rodeia; é, depois, também, aquele que vive perto da Natureza e que, não estando em guerra, também se serve de um conjunto de técnicas de sobrevivência e convívio com meios não civilizados, não muito tocados pelos Homens, naturais. O que queria exprimir o criador do movimento era a importância de a juventude crescer em contacto com o seu Mundo, habituada a compreender a Natureza, a proteger esse precioso património, observando e aprendendo, ou seja, explorando. Isto explica, por exemplo, o facto de o Escotismo ser um dos mais precoces e entusiastas movimentos com preocupações ambientais. Assim, a palavra scout chega aqui ao seu terceiro significado: movimento educativo de jovens ao ar livre e ao serviço da comunidade. Um movimento voluntário com fins pedagógicos, que visa ajudar os mais novos a crescer saudável e responsavelmente, segundo um conjunto de práticas de vida em campo e de serviço às comunidades. Era assim que Baden-Powell entendia a sua mais célebre criação.
E a palavra (ou palavras) portuguesa(s)? Quando, no início do século XX, se quis oficializar por cá o original movimento de Baden-Powell, pediu-se à população, através de jornal, que desse sugestões de nomes que definissem o movimento, na altura embrião da Associação dos Escoteiros de Portugal. Muitas surgiram. Uma só serviu. Uma palavra portuguesa já existente, tal como o vocábulo scout, e que descrevia uma parte importante do que de facto era o movimento[6]. O termo era escoteiro. Escoteiro era o indivíduo que “que viaja ligeiro, com pouco fardo ou sem bagagem, pagando escote pelo caminho para comida e bebida”[7]; escote significa “aquilo que compete a cada um pagar numa despesa comum; quota-parte”[8], tendo origem numa antiga palavra franca: skot (contribuição)[9]. De facto, o vocábulo exprimia bem a aventura e o desprendimento em relação aos confortos da civilização, já que o escoteiro de pouco mais precisa em campo do que das suas imaginação e vivacidade.
Porém, a A.E.P. não está só no panorama escotista português. Em 1923, 10 anos depois, surgia um ramo católico do movimento – o Corpo Nacional de Escutas[10]. “Em Novembro de 1934 foi publicado o novo Regulamento Geral do CNS, no qual o nome de Corpo Nacional de Scouts foi substituído pela nova designação oficial: Corpo Nacional de Escutas. O termo português vinha, assim, após um longo debate no seio da associação, fazer vingar a opinião da corrente “mais nacionalista” ao impor a lusitanização do termo estrangeiro que o CNS usou desde a sua fundação.”[11] Assim, fazia-se derivar o nome português directamente do scout. Confirma o Dr. José Francisco dos Santos, escuteiro: “A nossa associação adoptou para si o vocabulário inglês scout. A meu ver, houve um pouco de precipitação na escolha desse vocabulário. Se fosse hoje, estou convencido que se optaria pelo seu correspondente português, escuta. Scouting já não achou tão bom terreno e hoje está generalizado ou vai-se generalizando a palavra Escutismo que de Escuta deriva. É pois razoável que se emende à mão e que recorramos ao termo português para designar a associação. Porque não há-de ela chamar-se Corpo Nacional de Escutas?”[12]
Uma vez que são duas associações portuguesas denominadas diferentemente, põe-se a questão de saber quais os termos correctos: se os usados pelo Corpo Nacional de Escutas – escuteiro, escutismo e escuta –, se os usados pela Associação dos Escoteiros de Portugal – escoteiro e escotismo, se ambos, cada um pelas suas razões.
O Dicionário Etimológico explica os significados antigos de escoteiro e escote (p.448) e refere que escutismo é a adaptação do inglês scouting, proveniente de scout, significando "batedor de campo; soldado avançado de qualquer corpo que corre o campo para saber o que faz o inimigo" (p.452). O Grande Dicionário da Língua Portuguesa refere escoteiro, escotismo, escuteiro e escutismo e valida todos[13]. A Nova Enciclopédia Larousse usa o termo escuteiro indistintamente para ambas as associações e numa das acepções de escuta diz que é o mesmo que escuteiro[14]. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira faz o mesmo (mas não reconhece escuta como sinónimo) e diz ainda ser escoteiro a “grafia errada de escuteiro”[15], o que não é exacto.
O vocábulo escoteiro e, por extensão, o vocábulo escotismo, estão correctos. A A.E.P. adoptou a palavra escoteiro por causa do seu significado já existente e conciliável com o carácter do movimento, fazendo daí derivar o escotismo, acrescentando o sufixo ismo, que exprime a ideia de sistema.
Por outro lado, o nome escolhido pelo C.N.E. tem uma história diferente. Tanto João Vasco Reis como José Francisco dos Santos, citados acima, dizem que a palavra é a adaptação portuguesa do termo inglês scout. Não conhecemos os termos do debate dentro da associação católica, pelo que apenas podemos supor, apoiados na lógica, como se chegou a escuta desde scout. A palavra escuta, ligando-se ao significado, ou a uma parte dele, de scout, parece ter uma evolução paralela à do termo inglês. De facto, uma das acepções de escuta e do seu verbo escutar é “observar, escutar e dar informações acerca das manifestações do inimigo”; uma patrulha de escuta é um “grupo de dois ou mais soldados que à frente de uma posição exercem vigilância, durante a noite, procurando recolher indicações acerca das intenções e actividade do inimigo.”[16] Parece-se com a noção de batedor ou scout e, sem dúvida, fará parte da exploração. O paralelo com o Scouting faz-se facilmente, podendo derivar do vocábulo inicial outros sentidos mais adaptados à vida civil – tal como pensou Baden-Powell – e até se coaduna com a divisa associativa do C.N.E., que é “Alerta”. A ser esta a explicação para a diferença vocabular, partiria daqui um suporte etimológico para as palavras escuta e escutismo. O escuta é o que pratica a exploração; o escutismo é o movimento a que pertence o escuta. Estas palavras, segundo a explicação, também estão correctas. Porém, podem exprimir-se algumas reservas. A palavra escuteiro não existe no Dicionário Etimológico, que traz a origem das palavras portuguesas, não tendo, portanto, nenhum suporte, pelo menos radical ou antigo, que lhe sustente a existência; fica, pois, parecendo uma cópia má de escoteiro e um vocábulo sem história, reinventado e inserido à força no vocabulário. Quanto ao termo escuta, não tem um passado ligado a nenhum significado em português que se identifique directa ou suficientemente com a natureza destas associações; não é como escoteiro e necessita um exercício intelectual de associação ao seu conteúdo pedagógico mais elaborado e demorado. Trata-se de rejeitar uma denominação que, pelo seu significado original suficientemente completo, podia servir para designar todo o movimento – escoteiro –, de pegar numa palavra que da exploração guarda uma pequena função e de tentar desenvolver-lhe uma história que daí derivaria, seguindo o exemplo da palavra scout, explicado acima. Podíamos admirar completamente este trabalho intelectual se não houvesse, de facto, já um vocábulo português antigo, a partir do qual mais facilmente se pode construir o significado do nosso scouting, o que, historicamente, precede a criação das palavras adaptadas escutismo e escuta.
Para explicar a razão das referências a escuteiro em vez de escoteiro, nas enciclopédias e nos dicionários, é preciso admitir certa falta de rigor dessas entradas, a que não deverá ser estranha a maior expansão do C.N.E. entre nós.
Para concluir, uma vez que ambas as associações são portuguesas e, logo, se movimentam no mesmo espaço, sujeitas às mesmas circunstâncias, não se deixa de pensar que mais lógico seria que nos fosse próprio um só termo. Que o mesmo, pelas razões expostas, fosse escoteiro, donde derivaria escotismo. A mudança de apenas uma letra nos vocábulos não é um capricho de antiguidade da A.E.P., nem uma evidência de modernidade do C.N.E., pois, como vimos, numa letra há uma história mais complexa do que parece. Apesar de se poder concluir pela correcção de ambas as denominações, as reservas que expusémos em relação às do C.N.E. fazem-nos pensar que se veio estabelecer uma divisão, formal é certo, mas desnecessária.



[1] Escutismo para Rapazes, Robert Baden-Powell, edição do Corpo Nacional de Escutas, 2002, p. 298.
[2] Corpo Nacional de Escutas – Uma História de Factos, João Vasco Reis, edição do Corpo Nacional de Escutas, 2007.
[3] Idem, p.164.
[4] Oxford Advanced Learner’s Dictionary, Oxford University Press, 5th edition, 13th impression, 1999, p.1054: “1) a person, an aircraft, etc sent ahead to get information about the enemy’s position, strength, etc. (…) 2) Scout (also esp dated boy scout) a member of a branch of the Scout Association, an organization which aims to develop boy’s characters through discipline, outdoor activities and public service”.
[5] Escutismo para Rapazes, pp.3-5.
[6] V. História dos Escoteiros de Portugal, Eduardo Ribeiro, Aliança Nacional das ACM de Portugal.
[7] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.10, Editorial Enciclopédia Limitada, p.61.
[8] Idem.
[9] Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado vol.2, Livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.448.
[10] Que começou por se chamar Corpo de Scouts Católicos Portugueses – C.S.C.P. –, posteriormente Corpo Nacional de Scouts – C.N.S. e, por último, Corpo Nacional de Escutas, denominação que mantém.
[11] Corpo nacional de Escutas – Uma História de factos, pp.176-177.
[12] Flor de Lis, Dezembro de 1928, cit. em http://inkwebane.cne-escutismo.pt/Curiosidades/Outrashistórias/ScoutvsEscuta/tabid/277/Default.aspx; a Flor de Lis é a revista oficial do C.N.E.
[13] Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coord. de José Pedro Machado, vol.IV, Euro-Formação, 1989, p.577 e 587. É acrescentado o termo escoteirismo, raro entre nós.
[14] Nova Enciclopédia Larousse, vol.9, Círculo de Leitores, 1997, p.2685.
[15] V. vol. 10, p.115.
[16] Para ambas as citações, v. Grande Enciclopédia..., idem, p.114.

Nota: As imagens reproduzidas são ilustrações da autoria do próprio Baden-Powell e foram retiradas de Escotismo para Rapazes, p.32 e p.292.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Os Nok

Os Nok

Em 1928 foram descobertas na Nigéria Central (v. este país assinalado a azul no mapa), mais precisamente na localidade chamada Nok, situada “nas colinas do mesmo nome, próxima de Jos, na meseta de Bauchi”[1], várias estátuas de terracota (barro cozido no forno), que são as mais antigas terracotas do continente. Os homens que as produziram – denominados Nok – eram principalmente agricultores sedentarizados que cultivavam o inhame (para alimentação) e produziam óleo de palma, sendo provável que não criavam gado. Parecem ter sido pioneiros também na metalurgia, já que foram os primeiros ao sul do Sara a fundir o ferro. “A língua Nok estava possivelmente ligada à dos Protobantos, que enxameavam toda a África Central e Meridional. (...) Precedendo de vários séculos a cultura de Ifé, a civilização de Nok constitui um elo essencial para o conhecimento da antiquíssima história do continente africano. Nada se sabe sobre como terá desaparecido esta cultura, se de forma brutal ou na sequência de um progressivo declínio.”[2] Os Nok habitaram uma ampla área de “480 quilómetros por 160 quilómetros”[3] a norte da confluência do rio Níger com o Benué, entre cerca de 500 e 200 a. C.

A arte Nok

A sua arte tem algumas características que se devem assinalar. Os Nok representaram pessoas e animais. As cabeças humanas são modeladas segundo as formas geométricas em uso: esféricas, cónicas e cilíndricas; são em tamanho quase natural[4] e as feições são estilizadas. “As cabeças humanas, mesmo quando mostram alguma tendência para o naturalismo, nunca são retratos. Em contrapartida, os animais são tratados de forma realista, o que leva a pensar que as representações humanas se afastam da realidade voluntariamente e não por falta de habilidade dos artistas.”[5] De facto, há estudiosos que sugerem que existia uma recusa em fabricar retratos, pois o modelo poderia ficar exposto à acção de forças maléficas. Ainda assim, há uma preferência pela representação humana, embora tenham aparecido elefantes, macacos, serpentes e carraças.

A Cabeça de Jemaa

A peça considerada mais importante da cultura Nok é a Cabeça de Jemaa, descoberta em 1942. Modelada em forma esférica, a cara é uma superfície lisa, com olhos triangulares e nariz pouco saliente a que adere o lábio superior; os olhos, o nariz e a boca são perfurados e as orelhas estão “no ângulo do maxilar”[6].











A Arte Antiga da Nigéria

A arte Nok precedeu o aparecimento de outras manifestações importantes na Nigéria, como os bronzes de Igbo-Ukwu (IX-X d. C.), os mais antigos da África Ocidental; as referidas estátuas de Ifé (desde, pelo menos IX d. C. até XIV ou XV), em terracota e bronze, os únicos retratos da África Negra, representando monarcas e dignitários; as terracotas de Owo (entre Ifé e Benim), pelo século XIV, de temas macabros; e, já no Benim, estátuas e ornamentos em bronze e adereços cerimoniais de marfim.



No mapa podem ver-se a meseta de Bauchi e Jos, sítio perto do qual fica Nok, no centro país; Ife no sudoeste; Owo a sudeste de Ife; e Lagos - a capital, onde o Museu Nacional guarda estas peças arqueológicas - a sudoeste de Ife e Owo.





[1] Moderna Enciclopédia Universal, Círculo de Leitores, vol.14, p.41.
[2] Memória do Mundo – Das Origens ao Ano 2000, Círculo de Leitores, 2000, p.98.
[3] Idem.
[4] A cultura de Ifé foi, com a Nok, a única que também nos deixou terracotas destas dimensões.
[5] Idem, p.99.
[6] Idem.

Nota: Os mapas vêm da Moderna Enciclopédia Universal, idem, pp. 26 e 27; a imagem da Cabeça de Jemaa vem de Memória do Mundo, p.98.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Jogos Populares Portugueses

Os jogos populares fazem parte da vida quotidiana dos povos. Quando não estão a trabalhar as pessoas acham-se a conviver e a entreter-se. O divertimento, claro está, deve ser encarado com a espontaneidade com que é criado e com o à-vontade que ele mesmo cria. Porém, como é próprio dos seres humanos irem guardando todas as informações relativas ao seu universo, fica existindo também o ponto de vista académico, mais ou menos informado, completo, erudito. O entretenimento é assim estudado como parte da cultura de um povo, ao lado do trabalho e de outras manifestações. E os jogos populares são um capítulo relevante na cultura portuguesa da diversão. Entre nós há numerosos jogos populares, alguns tão populares que não têm regiões, outros mais restritos e, destes todos, as variantes, a adaptação local de jogos conhecidos em muitas terras. Está publicado sobre o assunto, entre outros, o livro Jogos Populares Portugueses - de jovens e adultos, de António Cabral, Editorial Notícias, 3ª ed., 1998. A obra contém a breve descrição dos jogos populares nacionais (com notas sobre jogos em Goa, Macau, Moçambique e na Galiza), algumas notas históricas, e referências a modos de divertimento que não sendo propriamente considerados jogos, se lhes aproximam por características parecidas, sendo claro o cuidado do autor em demonstrar a existência das variantes. Da malha, por exemplo, jogo popular que consiste no derrube de pinos com uma chapa de metal (a "malha"), diz António Cabral: "São muitas, de norte a sul de Portugal, as variantes deste jogo, o que lhe dá uma grande riqueza cultural, mas dificulta os torneios entre equipas de várias zonas, inclusivamente dentro da mesma região. Num torneio organizado pela ex-Junta Central das Casas do Povo de Braga foi um bico-de-obra acertar as regras entre os representantes dos diversos concelhos da zona. Mas é exactamente isso que é desejável: os traços culturais de uma comunidade devem ser respeitados. E nunca os técnicos promovam pura e simplesmente a uniformização, pois essa tentativa é desculturante." (p.41) É importante sensibilizar os jovens, nomeadamente nas escolas e no âmbito alargado da Educação Física, para a existência destas tradições portuguesas, para que não estranhem o que também lhes pertence e as possam escolher e preferir em substituição de passatempos menos pedagógicos e humanizantes. O livro contém bibliografia (pp.275-276). Do Autor publicou-se também a obra Jogos Populares Infantis.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Sarah Affonso, Almada Negreiros e a vida artística portuguesa no século XX, segundo testemunho oral


Quando idosa, a pintora Sarah Affonso (1899-1983) costumava conversar muito com a nora – Maria José de Almada Negreiros – e o tema era, muitas vezes, a Arte, os artistas, os artistas portugueses do século XX, a geração de Orpheu e o que se lhe seguiu. Sarah Affonso estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, ainda aprendeu com Columbano Bordallo Pinheiro (1857-1929) – pintor do naturalismo – e, nas suas primeiras exposições individuais (1928 e 1932) revelou-se uma artista moderna, com um estilo pessoal. Esteve a estudar em Paris (1923-1924 e 1928-1929) e foi casada com o multifacetado Almada Negreiros. Em 1944 ganhou o Prémio Amadeo de Souza Cardoso do SNI.[1] A sua pintura, embora moderna, mantém uma forte ligação a referências portuguesas - expressas em crianças, procissões, festas, coretos - não sendo, portanto, uma arte propriamente cosmopolita ou universalista como a dos pintores que estiveram no Orpheu e que chegaram a Lisboa com as novidades de Paris. Das tais conversas, diz a nora: “Comecei por tomar notas do que Sarah Affonso me contava, logo que chegava a casa. Ainda não pensava em publicar este livro, mas, mesmo para mim própria, não queria esquecer todos aqueles pormenores que me revelavam como era, na sua pequena história, a vida artística portuguesa desde o princípio do século.”[2] A junção de várias conversas recolhidas por um gravador “clandestino” e depois autorizadas pela pintora, deram um volume de cerca de 100 páginas, acessível, e com dados importantes para a compreensão do ambiente artístico português e da vida e personalidade de alguns artistas, cujo título agradavelmente despretensioso é Conversas com Sarah Affonso. Sarah Affonso fala de si mesma, do marido – o pintor, escritor, ensaista, etc., José de Almada Negreiros (1893-1970) – da amizade com Fernando Pessoa (1888-1935), das relações nem sempre lineares com Eduardo Viana (1881-1967), da pintura e aceitação problemática de Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), da história do casal Delaunay em Portugal, e, entre outras coisas, revela um pouco do que pode ter sido a influência de Santa Rita Pintor (1889-1918) – a quem chama “mestre” (p.24) – na arte de Almada, um tema pouco abordado, não só por causa da sua morte precoce, mas também pela exiguidade de testemunhos do próprio Almada sobre o pintor e pela má vontade com que Santa Rita é ainda hoje visto por alguns estudiosos para quem foi apenas um blagueur, sem realizações práticas de Arte. O texto é, portanto, significativo, não só por causa das revelações históricas, mas também por resultar de uma prática, tanto quanto sabemos, com pouca expressão em Portugal, que é o recurso ao testemunho oral, à experiência individual para a recolha de informações com efectivos aproveitamento e importância científicos.


“K4 QUADRADO AZUL


[Maria José de Almada Negreiros] - Os Delaunays estiveram cá por altura de 14, 15, não foi?
[Sarah Affonso] - Parece-me que vieram em 15. O Delaunay estava isento da tropa, acho que em caso de guerra são chamados na mesma, mas ele saiu de França e veio para cá, com o Amadeu. Foram viver para Vila do Conde. O Zé[3] sem querer tramou-lhes a vida e eles tiveram que fugir para Espanha. Isto porque o Amadeu gostava muito do conto «K4 quadrado azul». Estava-se em plena guerra e K4 parecia mesmo uma sigla misteriosa. O Amadeu gostava muito do K4, eu não gosto, já é uma coisa muito futurista, gosto é da «Engomadeira». Mas então o Amadeu disse ao Zé «olha, eu conheço um tipógrafo no Porto, que te faz isso muito barato». E levou o original com ele para o norte. Levou o manuscrito e nunca mais disse nada e o Zé que era um impaciente, manda-lhe um telegrama: «Dá notícias K4 quadrado azul.» Ao Almada não disseram nada, não sei porquê, mas ao Amadeu foram perguntar o que era aquilo e depois todo o grupo foi interrogado. O Viana esteve preso 15 dias na enxovia. Como não tinha dinheiro para pagar um quarto na polícia, foi para onde vão todos, isso é que é a enxovia. Ficou lá até que um dia se encheu de raiva, estava o juiz ou o polícia lá no gabinete a fazer-lhe perguntas e ele agarrou-se assim à mesa e com a cara dele encostada à do homem: «Você acha justo o que me estão a fazer? Se você tivesse um filho, se o visse aí, deixava-o ficar!?» E então deixaram-no ir embora.
[MJAN] - Mas esteve preso por causa do K4!?
[SA] - Pois, porque as explicações que ele dava não os convencia. E os Delaunays também estiveram presos. Foram eles e o Viana. O Amadeu como era de gente conhecida do Porto, deixaram-no ficar à solta. (...)
[MJAN] - Mas depois ficou tudo esclarecido?
[SA] - Depois, o Amadeu lá os convenceu que não eram espiões de guerra.”[4]



[1] Para estas referências, v. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.1, p.518 e vol. 1 da Actualização, p.112.
[2] Conversas com Sarah Affonso, Maria José de Almada Negreiros, Publicações Dom Quixote, 1993, p.7.
[3] José de Almada Negreiros.
[4] Idem, pp.44-45.
Nota: A imagem acima reproduzida vem da capa da obra citada na nota 2 e é a reprodução de dois auto-retratos, ambos da mesma altura, de Sara Affonso à esquerda (1927) e de Almada Negreiros à direita (c.1927).