quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Sarah Affonso, Almada Negreiros e a vida artística portuguesa no século XX, segundo testemunho oral


Quando idosa, a pintora Sarah Affonso (1899-1983) costumava conversar muito com a nora – Maria José de Almada Negreiros – e o tema era, muitas vezes, a Arte, os artistas, os artistas portugueses do século XX, a geração de Orpheu e o que se lhe seguiu. Sarah Affonso estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, ainda aprendeu com Columbano Bordallo Pinheiro (1857-1929) – pintor do naturalismo – e, nas suas primeiras exposições individuais (1928 e 1932) revelou-se uma artista moderna, com um estilo pessoal. Esteve a estudar em Paris (1923-1924 e 1928-1929) e foi casada com o multifacetado Almada Negreiros. Em 1944 ganhou o Prémio Amadeo de Souza Cardoso do SNI.[1] A sua pintura, embora moderna, mantém uma forte ligação a referências portuguesas - expressas em crianças, procissões, festas, coretos - não sendo, portanto, uma arte propriamente cosmopolita ou universalista como a dos pintores que estiveram no Orpheu e que chegaram a Lisboa com as novidades de Paris. Das tais conversas, diz a nora: “Comecei por tomar notas do que Sarah Affonso me contava, logo que chegava a casa. Ainda não pensava em publicar este livro, mas, mesmo para mim própria, não queria esquecer todos aqueles pormenores que me revelavam como era, na sua pequena história, a vida artística portuguesa desde o princípio do século.”[2] A junção de várias conversas recolhidas por um gravador “clandestino” e depois autorizadas pela pintora, deram um volume de cerca de 100 páginas, acessível, e com dados importantes para a compreensão do ambiente artístico português e da vida e personalidade de alguns artistas, cujo título agradavelmente despretensioso é Conversas com Sarah Affonso. Sarah Affonso fala de si mesma, do marido – o pintor, escritor, ensaista, etc., José de Almada Negreiros (1893-1970) – da amizade com Fernando Pessoa (1888-1935), das relações nem sempre lineares com Eduardo Viana (1881-1967), da pintura e aceitação problemática de Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), da história do casal Delaunay em Portugal, e, entre outras coisas, revela um pouco do que pode ter sido a influência de Santa Rita Pintor (1889-1918) – a quem chama “mestre” (p.24) – na arte de Almada, um tema pouco abordado, não só por causa da sua morte precoce, mas também pela exiguidade de testemunhos do próprio Almada sobre o pintor e pela má vontade com que Santa Rita é ainda hoje visto por alguns estudiosos para quem foi apenas um blagueur, sem realizações práticas de Arte. O texto é, portanto, significativo, não só por causa das revelações históricas, mas também por resultar de uma prática, tanto quanto sabemos, com pouca expressão em Portugal, que é o recurso ao testemunho oral, à experiência individual para a recolha de informações com efectivos aproveitamento e importância científicos.


“K4 QUADRADO AZUL


[Maria José de Almada Negreiros] - Os Delaunays estiveram cá por altura de 14, 15, não foi?
[Sarah Affonso] - Parece-me que vieram em 15. O Delaunay estava isento da tropa, acho que em caso de guerra são chamados na mesma, mas ele saiu de França e veio para cá, com o Amadeu. Foram viver para Vila do Conde. O Zé[3] sem querer tramou-lhes a vida e eles tiveram que fugir para Espanha. Isto porque o Amadeu gostava muito do conto «K4 quadrado azul». Estava-se em plena guerra e K4 parecia mesmo uma sigla misteriosa. O Amadeu gostava muito do K4, eu não gosto, já é uma coisa muito futurista, gosto é da «Engomadeira». Mas então o Amadeu disse ao Zé «olha, eu conheço um tipógrafo no Porto, que te faz isso muito barato». E levou o original com ele para o norte. Levou o manuscrito e nunca mais disse nada e o Zé que era um impaciente, manda-lhe um telegrama: «Dá notícias K4 quadrado azul.» Ao Almada não disseram nada, não sei porquê, mas ao Amadeu foram perguntar o que era aquilo e depois todo o grupo foi interrogado. O Viana esteve preso 15 dias na enxovia. Como não tinha dinheiro para pagar um quarto na polícia, foi para onde vão todos, isso é que é a enxovia. Ficou lá até que um dia se encheu de raiva, estava o juiz ou o polícia lá no gabinete a fazer-lhe perguntas e ele agarrou-se assim à mesa e com a cara dele encostada à do homem: «Você acha justo o que me estão a fazer? Se você tivesse um filho, se o visse aí, deixava-o ficar!?» E então deixaram-no ir embora.
[MJAN] - Mas esteve preso por causa do K4!?
[SA] - Pois, porque as explicações que ele dava não os convencia. E os Delaunays também estiveram presos. Foram eles e o Viana. O Amadeu como era de gente conhecida do Porto, deixaram-no ficar à solta. (...)
[MJAN] - Mas depois ficou tudo esclarecido?
[SA] - Depois, o Amadeu lá os convenceu que não eram espiões de guerra.”[4]



[1] Para estas referências, v. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.1, p.518 e vol. 1 da Actualização, p.112.
[2] Conversas com Sarah Affonso, Maria José de Almada Negreiros, Publicações Dom Quixote, 1993, p.7.
[3] José de Almada Negreiros.
[4] Idem, pp.44-45.
Nota: A imagem acima reproduzida vem da capa da obra citada na nota 2 e é a reprodução de dois auto-retratos, ambos da mesma altura, de Sara Affonso à esquerda (1927) e de Almada Negreiros à direita (c.1927).

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