domingo, 26 de fevereiro de 2012

OS CAVALOS QUE ENCOLHEM OU OS EQUÍVOCOS SOBRE A EVOLUÇÃO BIOLÓGICA




Texto também publicado no blog AstroPT.



Acham que “A Selecção Natural  faz com que os indivíduos se modifiquem para se adaptarem ao seu meio”?

Numa primeira leitura, esta frase até pode parecer fazer sentido...Não é certo que nós vamos tentando adaptar-nos às circunstâncias cambiantes conforme necessário? Sim. Mas, por mais que esta visão algo antropocêntrica nos agrade, ela não é a evolução por selecção natural.
Esta é uma visão que vem ainda da teoria de evolução proposta pelo naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck, que implicava a hereditariedade de características adquiridas. O que quer isto dizer? Bem, quer dizer que os seres vivos, ao tentarem adaptar-se ao seu meio ambiente, sofriam alterações anatómicas, por exemplo, e que essas alterações (ou novas características) eram passadas às sua descendência. Esta explicação há muito foi abandonada pelos biólogos evolutivos e só ocorre em casos muito raros (por exemplo, quando a radiação afecta as células das linhas germinais, os gâmetas, causando mutações).

Como funciona então a Selecção Natural, o mecanismo proposto pelo grande naturalista inglês Charles Darwin e que é hoje aceite como um dos processos responsáveis pela evolução biológica?
Sejamos um pouco antropocêntricos, só por um momento, e pensemos na nossa espécie, Homo sapiens. São todos os indivíduos da nossa espécie iguais? Não: há pessoas de diferente altura, com diferente cor de cabelo, de olhos, de pele, etc. Estas diferenças que nos parecem tão evidentes na nossa espécie existem em todos os seres vivos! Desde a mais diminuta bactéria até ao gigante elefante africano. E, pequenas diferenças na anatomia ou no comportamento levam a que diferentes indivíduos tenham diferente capacidade para sobreviver e se reproduzir. Num determinado momento e num determinado local, certos indivíduos têm uma pequena vantagem de sobrevivência, reproduzem-se mais facilmente e deixam mais descendentes. Os seus descendentes vão naturalmente herdar as características dos progenitores e, deste modo, aumentar a frequência dessas características na população. Ao longo do tempo, temos a “ilusão” de que a espécie se foi modificando. Na verdade, assim nascem novas espécies! Mas não é pela transformação individual, mas sim pela sobrevivência diferencial de indivíduos com certas características que lhes trazem vantagens.


Equus vs. Sifrhippus, de Danielle Byerley (Florida Museum of Natural History). A foto pode ser algo enganadora porque dá a ideia de que os cavalos actuais se transformaram nessa espécie anã.



E que tem isto a ver com os cavalos que "encolheram"?

Pois esse é um exemplo recente de como uma interessante notícia acerca da mudança observada numa espécie devida a alterações climáticas (semelhantes às que tudo indica estarem a ocorrer actualmente) foi algo erroneamente transmitida pela comunicação social e blogosfera em geral.
Há excepções, claro. E aqui podem ler, em inglês, uma boa descrição do que é que os cientistas descobriram.

Leu-se então nos últimos dias, no jornal Público, por exemplo, a notícia de que os cavalos teriam diminuído de tamanho devido às alterações nas condições ambientais de há 56 milhões de anos atrás, nomeadamente o aumento da temperatura que se verificou no período do Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno.

Primeiro, há que perceber que esses cavalos nem sequer eram do mesmo género que existe atualmente, o género Equus, mas sim de um outro género primitivo chamado Sifrhippus (sim, a notícia do Público não tem o género bem escrito!). Os primeiros fósseis destes pequenos cavalos indicam que pesavam cerca de 6Kg. No entanto, verificou-se que, com o passar do tempo e o aumento da temperatura do planeta, os fósseis encontrados são de animais cada vez mais pequenos, até atingirem cerca de 4Kg (uma redução de 30%). Com a diminuição da temperatura, voltam depois a aumentar de tamanho para cerca de 7Kg (em média). Isto ocorreu ao longo de quase 200  mil anos.

Neste vídeo, podem ver um resumo dos resultados e como foram obtidos.




E como se explica isto correctamente, à luz da Teoria da Evolução?

Na população inicial de cavalos Sifrhippus, havia indivíduos de diferentes tamanhos, mas com uma média de 6Kg. Com o aumento gradual da temperatura, os cavalos que eram ligeiramente mais pequenos tinham algumas vantagens de sobrevivência (se calhar, por exemplo, porque comiam menos vegetação ou eram menos propensos a doenças – especulação minha!). Sobreviviam portanto durante mais tempo, reproduziam-se melhor e tinham mais descendentes. Esses descendentes herdavam as características dos progenitores e eram, portanto, também pequenos. Ao longo de milhares de anos, o resultado que hoje observamos é que o tamanho médio da espécie diminuiu. Não porque os indivíduos diminuíram de tamanho, mas porque a proporção de indivíduos de tamanho mais pequeno na população foi aumentando significativamente, mudando o tamanho médio observado. Com as mudanças ambientais posteriores em sentido contrário, o tamanho voltou a aumentar.

Mas não foram os indivíduos acalorados que encolheram!


NOTA: Para melhor perceber a evoluçao biológica, podem recorrer a este site de referência: Understanding evolution

7 comentários:

J. A. Pestana disse...

Bom artigo. Gosto sempre de ler algo que ajude a clarificar os mecanismos por detrás dos processos evolutivos, ou mais importante ainda, a como pensar devidamente sobre questões relacionadas com Evolução.

No entanto, tenho que fazer aqui um bocadinho de advogado do diabo, pois penso que também pode ser útil.
Quando alguém escreve "os cavalos encolheram", não quer necessariamente dizer que esteja a ver a coisa pelo prisma errado. De facto, pode ser apenas uma falácia de escrita e não de pensamento: "os cavalos ("a espécie, ao longo do tempo") encolheram."
Obviamente que isto tem um espaço enorme para ser enganador, tanto na informação que passa sobre relação entre as espécies de cavalos existentes, mas também pela possibilidade tremenda que tem de transmitir uma ideia errada sobre o que se passa com a sobrevivência de indivíduos por processos de selecção natural. No entanto, não consigo dizer sem sombra de dúvida que a pessoa que escreveu a notícia em questão não sabia do que falava, podendo ela apenas não se aperceber do poder enorme que as palavras têm neste tipo de descrições científicas. E isso tem sem dúvida que ser melhorado por nós, enquanto cientistas, fazendo também esforço por outro lado por não alienar as população em geral. É uma questão complicada, mas acredito num bom futuro para a divulgação científica, e artigos como este são sem dúvida esclarecedores nesse aspecto.

Por último, gostava de fazer um pequeno "reparo" no que à posição actual do Lamarckismo na investigação em biologia evolutiva. Apesar de não ser à escala que o Sr. Lamarck provavelmente ambicionava, a verdade é que temos dados hoje em dia que apontam para haver, de facto, alguma transmissão de características adquiridas pelo indivíduo para a geração seguinte. Estudos em Epigenia conseguiram recentemente demonstrar que, através de metilação do DNA, entre outros processos, existem alterações que são passadas à descendência dependentemente do "percurso de vida" do ancestral, podendo esse sinal "evolutivo" ser mantido pelo menos durante algumas gerações - a título exemplificativo, "Epigenetic Transmission of the Impact of Early Stress Across Generations", por Franklin et al, em 2010.
Nunca o suficiente para provocar um processo de especiação... mas mesmo assim é importante salientar que o Lamarckismo não está (totalmente) morto.

Cumprimentos, e continuação de bom trabalho com o blog!

João Lourenço Monteiro disse...

Meu caro amigo J. Pestana,

Em primeiro lugar, quero deixar-te um grande abraço, e o desejo expresso de te contactar quando vier com tempo a Lisboa para confraternizarmos enquanto bebemos um café.

Posto isto, 2 breves comentários:
- Relativamente à entrevista, creio que houve confusão da parte de quem escreveu. Na melhor das hipóteses o/a jornalista compreendeu o conceito, mas não o conseguiu passar da melhor maneira. O que é certo é que também eu notei uma grande confusão no texto do jornal.
Isto remete para a questão da divulgação de ciência nos jornais que deve ser feita por especialistas: por cientistas com alguma formação em jornalismo, ou por jornalistas com especialidade em ciências. Isto já existiu, mas com os cortes de financiamento na imprensa, alguém teve de sair. Daí a importância de projectos como o "Ciência na Imprensa Regional".
- Quanto à Epigenética, parece-me uma questão válida, mas não me parece Lamarckista. Para isso teria de ser Lei do uso e desuso + Hereditariedade das características adquiridas. Terei de ler o artigo que recomendaste para 1 análise mais profunda.

Obrigado pelo comentário e grande abraço.

J. A. Pestana disse...

... Sei que não é a melhor fonte possível, mas assim do pé para a mão, vai ter que chegar:

"Despite this abandonment, interest in Lamarckism has recently increased, as several studies in the field of epigenetics have highlighted the possible inheritance of behavioral traits acquired by the previous generation."

- in Wikipedia, artigo sobre Lamarckismo em inglês.

E até consegue ser exemplificativo da Lei do Uso e Desuso, visto a plasticidade comportamental dos sujeitos em questão ficar comprometida.
Vou tentar enviar-te o artigo e que falei, e mais qualquer coisa mais daqui a bocado, depois de almoço.

Um abraço!

Diana Barbosa disse...

Obrigada pelos comentários! :)

O problema não está tanto em dizer que "Calor fez diminuir tamanho de cavalos", mas sim no que fica por explicar ou mal explicado na notícia.
O texto do Público, combinado com a foto, dá a entender que os cavalos, como hoje os conhecemos (animal do lado esquerdo), encolheram até ao tamanho de gatos (animal do lado direito).
Isto é que altamente erróneo.

Claro que se podem usar termos mais simples para explicar o fenómeno a leigos e os jornalista que escreveu a notícia pouco ou nada saberá de evolução.
Neste caso, bastava ser claro e dizer que era uma espécie ancestral já de si muito mais pequena! A redução de tamanho é de 30%, o que já é importante, mas nada que se compare ao que fica implícito na foto sem explicação...nem explícito no texto, e passo a citar: "A investigação mostrou que o Sifrhippus diminui quase para um terço do tamanho original"!
Quem escreveu, se traduziu, pelos vistos nem inglês percebe.

De todas formas, mais que uma crítica à notícia, este é um post de esclarecimento de um conceito (a seleção natural). Como bem disseste, este era um artigo que pretende ajudar "a clarificar os mecanismos por detrás dos processos evolutivos, ou mais importante ainda, a como pensar devidamente sobre questões relacionadas com Evolução." :)

Quanto ao lamarquismo, continuo a afirmar que a epigenética é algo diferente da teoria proposta por Lamarck (já para nem falar que ele defendia uma "progressão" evolutiva bem diferente da de árvore da vida, com múltiplas origens).
Mas lerei o artigo, se conseguir aceder a ele ;)

J. A. Pestana disse...

Atenção, que eu não escrevi que Epigenética = Lamarckismo! O que eu escrevi foi que, através de estudos com mecanismos epigenéticos (metilação do DNA, etc), constatou-se que havia passagem de certas características à geração seguinte, nomeadamente a nível de modulação de genes na resposta ao stress, no artigo muito em específico que citei.

E também não escrevi que o Lamarckismo estava vivo e de boa saúde, nem que era efectivamente a explicação da berra para os processos evolutivos. E passo a citar-me: "Nunca o suficiente para provocar um processo de especiação... mas mesmo assim é importante salientar que o Lamarckismo não está (totalmente) morto."
:P

Estão a ver... a linguagem é um processo no qual não só o escritor tem "responsabilidade", mas também o leitor ;) e é um problema desde que a Humanidade existe, e pouco há a fazer a esse respeito, a não ser talvez esforçarmo-nos, cada um de nós, por nos entendermos uns aos outros melhor... Clareza de ideias, clareza de expressões =)

Vou enviar o artigo ao João, e mais uns poucos que tenho aqui sobre Genética e Desenvolvimento do Comportamento dentro da mesma temática.

Cumprimentos!

Vera disse...

Gostei do seu texto. É importante que haja pessoas dispostas a clarificar e corrigir algumas notícias que surgem.

Os temas da evolução são muito importantes e a maioria da população pouco conhecimento têm sobre eles. Não possuindo assim, pensamento crítico sobre o que leem. Por isso estas iniciativas são uma mais valia.

Naturalmente que compreendo os erros dos jornalistas. No entanto, eles deviam certificar-se que estão a transmitir a informação da forma mais correcta, mesmo que tivessem que pedir a alguém com conhecimentos na área para rever.

Mais uma vez, parabéns pelo texto!

Diana Barbosa disse...

Muito obrigada, Vera! :)

É nosso objectivo primordial tentar esclarecer tanto os temas que possam parecer mais complicados como aqueles sobre os quais há uma falsa sensação de compreensão. A evolução cai, por vezes, nesta última categoria.

Pelas nossas carreiras profissionais, já aqui publicámos vários textos sobre este tema e vamos seguramente publicar mais.

Passe por cá! ;)