sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

História Regional de Portugal III - A Vida quotidiana na Ericeira de 26 de Setembro de 1909 a 31 de Agosto de 1916 (2ª parte)

Em 1898, a Mala da Europa levava até um subtítulo indentificativo da sua missão: "Semanário ilustrado destinado ao Brasil e colónias portuguesas" (idem, p.12). O seu objectivo, ao lado da qualidade dos textos e das imagens, terá concorrido para o seu sucesso. É preciso lembrar que não havia meios de comunicação como actualmente, pois nem o telefone era ainda comummente usado nas casas; por isso, a imprensa era um veículo privilegiado de notícias e meio de contactos à distância. No periódico chegaram a colaborar Lopes de Mendonça, Manuel Arriaga, Teófilo Braga, Ana de Castro Osório, Tomás Ribeiro, entre outros. Um desses outros colaboradores, conhecido sobretudo na sua terra natal, era Jaime Lobo e Silva, o correspondente da Ericeira para a Mala da Europa. As notícias das províncias portuguesas eram breves anotações dos acontecimentos actuais mais importantes, por onde se podia ver um vivo retrato do quotidiano. Nas notícias redigidas por Lobo e Silva há festas religiosas, corridas de touros, bailes, inaugurações de obras públicas, etc. A Mar de Letras Editora publicou em 1998 uma recolha da sua colaboração para a Mala da Europa, que é mais um contributo para a compreensão da vida regional no passado português. "A Vida Quotidiana na Ericeira nos Começos da I República", que inclui textos introdutórios sobre o periódico e o ericeirense, reúne as breves notícias da vila desde a edição de 26 de Setembro de 1909 até à de 31 de Outubro de 1916. Jaime d'Oliveira Lobo e Silva (09/11/1875 - 11/09/1943), natural da Ericeira, foi militar de 1895 a 1907, colaborou na Mala da Europa de 1909 a 1916, foi escriturário da Escola Académica de Lisboa de 1917 a 1922, em 1923 está na Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, onde fica até à morte, e ainda ajudou a organizar o arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, nos anos '30. Dele disse Horácio Gorjão, um amigo, na edição d' O Concelho de Mafra, de Dezembro de 1956: "Vejo-o no seu escritório da Misericórdia da Ericeira, junto ao velho relógio inglês de pêndulos, rodeado de livros tocados pelos anos, ante o cinzeiro pejado de intermináveis pontas de cigarros. Oiço-o falar com aqueles que, na grandeza ou na miséria da vida, iam insensivelmente perpassando naquele ambiente calmo, como se o tempo houvesse ali parado (...). (...) E cá fora, ele era o Mestre Jaime, da Ericeira burocrática, o homem que registava as crianças e as vacinava, o procurador, o turismo, o cicerone, o homem que tudo resolvia e tudo simbolizava e naquela modesta banca da Santa Casa da Misericórdia insensivelmente fizera o centro da vida relativa e oficial. Mas tudo isto se escondia atrás de uma modestia teimosa, tão sincera que ao ouvi-lo falar-me da sua mocidade, dos seus amores, das coisas que gostava, daquilo que simplesmente o fazia feliz, com tão pouco e com tão grande contentamento, eu me sentia pequeno na vanglória quotidiana." (A Vida Quotidiana na Ericeira, p.19).

Excertos:

"Ericeira, 19 de Setembro [de 1909 e para a edição de 26 desse mês]
O Sr. António da Costa Gaspar está tratando com a companhia dos telefones para ver onde se pode organizar a ligação daqui com a rede geral de Lisboa. Oxalá se consiga tal melhoramento, de grande alcance para esta localidade. (p.29)
(...)

Ericeira, 1 de Novembro [de 1911 e para edição de 5 desse mês]
Realiza-se hoje, Dia de Todos os Santos a feira anual do Livramento (Azueira), partindo para ali, de passeio, algumas famílias desta vila.
Vai partir para Maceió (Brasil) o reverendo padre Sangreman Henriques, pároco nas Caldas da Rainha, e que há anos paroquiou tão bem a vizinha freguesia de Santo Isidoro.
Terminaram ontem na Igreja Paroquial desta vila as solenidades do Terço do Rosário que durante todo o mês ali se realizaram, sendo a parte musical desempenhada por um grupo de meninas da colónia balnear e desta vila, coadjuvadas por uma distinta organista.
Também ali se realizou, no dia 29 último, a Festa do Sagrado Coração de Jesus, havendo missa solene de Exposição, sermão e de tarde Te Deum.
Já regressou do Gerês o nosso amigo Henrique Franco Dias, que nos diz achar-se quase restabelecido. Hoje foi ele de automóvel do também nosso amigo José António Lopes, de passeio à Feira do Livramento, aproveitando a ocasião para ali comprar algumas juntas de bois, que tencionam remeter para a importante roça que o Sr. Lopes possui em S. Tomé; vai agora administar aquela roça o Sr. Barata, um encarregado que merece ao Sr. Lopes toda a confiança e simpatia. (p.84)

Ericeira, 3 de Setembro [de 1913 e para edição de 7 desse mês]
Realizou-se no dia 31 último a anunciada corrida na praça desta vila. O gado cumpriu e os amadores houveram-se relativamente bem, estando a praça à cunha. A corrida foi dirigida pelo nosso amigo José Fino, que mostrou bem a sua competência para tal cargo. (...) No próximo dia 14 deve realizar-se uma outra corrida, mas esta promovida por um grupo de toureiros profissionais de Lisboa. Espera-se também grande concorrência.
No dia 1 do corrente realizou-se a abertura da época da caça neste concelho. Organizaram-se vários grupos de caçadores desta vila, sendo abatido grande número de peças de caça. À noite alguns desses grupos reuniram-se em casa do nosso amigo Jaime Espáris Neves, onde este amador da arte venatória lhes forneceu um abundante jantar (...)." (p.123)

Fontes:
  • Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.9, pp.931-933 e vol.15, p.982;
  • Nova Enciclopédia Larousse, Círculo de Leitores, vol.9, p.2638;
  • Guia de Portugal - Lisboa e Arredores, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.569-572;
  • A Vida Quotidiana na Ericeira nos Começos da I República - vista através da correspondência de Jaime Lobo e Silva para a "Mala da Europa", Mar de Letras, col. Lugares de Memória, 1998.
Nota: A imagem reproduzida acima vem da capa d' A Vida Quotidiana na Ericeira e é uma montagem de esboços de Joaquim Marrão com um quadro a óleo (representando Lobo e Silva) do Dr. António Bento Franco, do Arquivo Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira.

Sem comentários: