Julio Cezar Machado (1835-1890) foi um dos mais interessantes autores portugueses do seu século. Apesar de ter publicado ficção, as suas obras mais cativantes são as que falam da sua época. Sobre Lisboa deixou numerosas crónicas que fazem a cidade como que reviver, com as suas ruas e as suas figuras típicas, passados cerca de 150 anos. Podem nomear-se, por exemplo, a Lisboa na Rua (1874) ou a Lisboa de Ontem (1877). Hoje, no entanto, falaremos d' Os Teatros de Lisboa, de 1875, reeditado pela Frenesi em 2002, conservando as ilustrações de Raphael Bordallo Pinheiro. Ao longo de cerca de 130 páginas, aliás muito bem escritas dentro de um estilo familiar e pitoresco sem deixar de ser cuidado, o folhetinista fala dos artistas (actores, dramaturgos, músicos) que trabalhavam nos teatros S. Carlos, D. Maria II e Trindade. Se António de Sousa Bastos (1844-1911) no seu Diccionario do Theatro Portuguez (1908) nos deixou um trabalho de erudição, muito investigado e em tom sério, Julio Cezar Machado oferece-nos o complemento vivo, palpável, susceptível de empatia imediata, do mesmo assunto. Descrevendo as figuras do teatro português um pouco como Bordallo Pinheiro as traçava à pena nos jornais, o escritor deixa um retrato jovial e crítico de numerosas celebridades de então: Emília das Neves, Coppolla, Santos, Manuela Rey, Beneventano, Garrett, para citar uns poucos. É um testemunho precioso, pois, como se disse, lê-se como se fosse a vida a decorrer.
Excerto do livro:
"O outro director da orquestra, Guilherme Cossoul, dava em aplicação, em assiduidade, em atenção e em paciência quanto bastasse por dois. Eram-lhe incumbidas as óperas difíceis, que requressem grande número de ensaios e aquela perseverança que não quer ser paga noutra moeda senão a glória de agradar e de vencer. O público teve sempre confiança nas óperas dirigidas por Cossoul; e os cantores iam para a cena com esperança e fé, em ele estando de poleiro no meio dos músicos, ou antes, por cima deles, no seu estrado de honra. Quando se interessava por algum artista, fazia tais prodígios com a batuta, que a maior parte da gente incapaz de compreender a paixão da arte julgava-o namorado. Foi assim que se espalhou que ele ia casar ora com uma prima-donna, ora com outra, e cada ano lhe atribuíam noiva, até que a última cortou a legenda no melhor do boato, a cantora Harris. (...) Guilherme Cossoul nem dava por estas coisas. Qual! Ia regendo a orquestra. Ia ensaiando os cantores. Ia trabalhando. Gravemente. Austeramente. (...) Depois, fora do teatro, ia sendo bombeiro, e, ainda mais que bombeiro, bombista!..., isto é, brincalhão, farsista, trocista, calçoísta! (...) Há casos em que se tem medo dele como do Diabo, por seus artifícios e malefícios. (...) Os menos prudentes, tão depressa o vêem aparecer, tomam desde logo precauções injuriosas. Se é no campo e ele vai estar de hóspede na mesma casa em que estejamos, tem uma pessoa todas as noites de visitar o quarto, abaixar-se, ver bem por baixo da cama, remexer os móveis, sondar as paredes, tapar o buraco da fechadura, dar três voltas à chave e guardá-la segura. E apesar deste luxo de precauções ainda se fica inquieto... (...) Principiam sempre as hostilidades quando os convivas, munidos cada um com a competente palmatória e vela de estearina, vão tranquilamente para os seus quartos. cai de repente em cima deles uma chuva de travesseiros e de almofadinhas, que apaga de repente as luzes. Pragas de um lado, risota do outro, lá se acende a luz outra vez; e cada um, instruído já pela experiência, vai de degrau em degrau abrigando a chama com mão protectora..." (Júlio César Machado e Rafael Bordalo Pinheiro, Os Teatros de Lisboa, Lisboa, Frenesi, 2002, pp.35-40; a imagem reproduzida vem na p.2.)
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