domingo, 11 de maio de 2008

Uma História Oral do Nosso Tempo I

"Joe Gould é um homenzinho jovial e emaciado que se tornou numa personagem conhecida nas cafetarias, snacks, bares e tascas de Greenwich Village ao longo de um quarto de século. Por vezes gaba-se um pouco a contragosto de ser o último dos boémios. «Todos os outros foram ficando pelo caminho», diz ele. «Uns debaixo da terra, outros no manicómio, e outros na publicidade.» A vida de Gould está longe de ser fácil; vive constantemente atormentado pela mesma trindade de males: fome, ressacas e sem-abrigo. Dorme em bancos do metro, no chão em ateliers de amigos, e em albergues nocturnos na Bowery. (...) Tem um metro e sessenta e raramente pesará mais do que quarenta e cinco quilos. Ainda há pouco tempo contou a um amigo que não comia uma refeição decente desde 1936, quando foi à boleia até Cambridge e participou no banquete da associação dos finalistas de Harvard de 1911, de que faz parte. «Sou a maior autoridade dos Estados Unidos», diz ele, «em matéria de viver sem nada.» (...) Os donos de café e baristas da Village falam dele como o Professor, o Gaivota, Professor Gaivota, Mangusto, Professor Mangusto, ou o Rapaz de Bellevue." (1) Começa deste modo um dos mais conhecidos perfis que o jornalista Joseph Mitchell escreveu para The New Yorker, em 1942. Joseph Ferdinand Gould tinha nascido em 1889 em Norwood, Massachusetts, numa família antiga e bem colocada na sociedade. O pai e o avô eram médicos e dele se esperava o mesmo, apesar de reconhecer-se inábil: "A verdade é que não tinha jeito para grande coisa - nem em casa, nem na escola, nem nas brincadeiras. (...) Ainda por cima era o que o meu pai chamava uma criança catarrosa - tinha o nariz sempre a pingar. Normalmente, quando devia estar a prestar atenção a alguma coisa, estava ocupado a assoar o nariz." (2) Quando acabou a escola em Norwood, formou-se em Harvard e, sem pistas sobre um futuro a obter, interessou-se por Eugenia - que estudou em Long Island - e partiu para North Dakota onde mediu os crânios de mais de um milhar de índios, até ter de regressar a casa, impossibilitado de prosseguir este trabalho, por causa de problemas finaceiros da família. O pai quis arranjar-lhe um emprego, mas Gould, que em Norwood não se sentia em casa, decidiu ir para Nova Iorque seguir uma carreira literária. "Vim para Nova Iorque com a ideia na cabeça de me tornar crítico teatral, por pensar que isso me deixaria tempo para escrever romances, peças, poemas, canções, artigos e um ou outro ensaio sobre eugenismo, e acabei por conseguir um lugar no Evening Mail, uma espécie de meio moço-de-recados e meio aprendiz de jornalista na esquadra central da polícia." (3)
(1) O Segredo de Joe Gould, Joseph Mitchell, Publicações D. Quixote, 2002, pp. 19-20
(2)Idem, p.59.
(3)Idem, p.65.

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