Existe uma tendência recente para diferenciar História de "estória". Aquela é o estudo geral dos sucessos da sociedade no passado. Esta seria uma narração mais ou menos fantasiosa baseada num facto verdadeiro e verificável, ou uma descrição verdadeira de um facto local ou pouco influente em relação à História Geral[1], quase sempre uma breve efeméride esgotada numa partilha informal de conhecimento e de pouca ou nenhuma relevância para a ciência. A verdade é que não encontrámos nenhuma referência à palavra nos dicionários e enciclopédias[2] que consultámos, excepto na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira[3] - onde vêm as palavras "estória" e "estórea", ambas com o mesmo significado: grafia antiga de história – e num exemplo que, a propósito da etimologia da palavra História, se dá no Dicionário Etimológico da forma antiga deste vocábulo, no que condiz com a informação da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira[4]. Sem base para apoiar a dissidência, não daremos, portanto, qualquer importância ao vocábulo. Aliás, se fantasioso, pode ser substituído por "lenda" ou "tradição". Se se referir a um facto local, chamar-lhe-emos com mais propriedade um acontecimento da "história regional", pois todo o facto tem interesse para completar a informação sobre os tempos em estudo. Neste sentido, a mera anedota, desde que seja real e confirmada na fonte, faz parte da História, não sendo de criar ou alimentar a necessidade de um novo vocábulo para estes factos aparentemente menos importantes. Dar preponderância à diferença é pouco democrático e honesto da parte de quem se propõe estudar seriamente o passado, pois a História não pode ter uma vertente “séria” e outra “pitoresca”. Todos os factos concorrem para o enriquecimento do saber e contribuem para uma visão humanizada do passado.
Ao lado deste significado, tem havido também a tendência de atribuir a "estória" um conteúdo literário, ou seja, a ciência que estuda o passado humano fica sendo a História, mas a narração de sucessos fantasiosos, ou com fins artísticos, é "estória". Apesar da diversidade de conteúdos, continua a não fazer sentido diferenciar a grafia dos termos. À semelhança do que se faz, por exemplo, em Direito (embora num sentido um pouco diferente), podem distinguir-se tanto pelo contexto, como pela maiúscula que leva a História quando ciência[5].
[1] Já temos ouvido dizer do Prof. José Hermano Saraiva que, na televisão, não fala da História, preferindo divulgar os factos lendários ou pitorescos da História nacional que foram alimentando o imaginário colectivo – seriam "estórias" da História – vocábulo a que não reconhecemos legitimidade para nomear essas realidades, como é expresso no texto.
[2] A palavra não foi encontrada nas seguintes obras: José Pedro Machado (coord.), Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade de Língua Portuguesa - Euro-formação, Valorização Pessoal e Profissional, Lda., Algés, 1989; Dicionário da Língua Portuguesa, 5ªedição, Porto Editora, Porto, s.d.; Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1ªed., Texto Editora, Lisboa, 1995; Lexicoteca – Moderna Enciclopédia Universal Círculo de Leitores, 1986; Nova Enciclopédia Larousse, Circulo de Leitores, 1998; nem sequer em José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 1989, pelo menos de algum modo separado do termo de que é uma forma antiga – "História".
[3] Vol.10, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa – Rio de Janeiro, p.493.
[4] “Séc.XIII: «contoull’en[d] a estoria maravilhosa»”, p.235.
[5] Ver, por exemplo, Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol.1, 11ªed., Coimbra Editora, 2001, pp.52-54. Quando "Direito" vem com maiúscula refere-se ao conjunto de normas que ordena a sociedade; mas quando vem com minúscula, já se refere a uma "faculdade" (direito) de cada sujeito tutelada pela lei. Isto porque, tanto no que se refere à História, como ao Direito, em português não existem dois termos para diferenciar os sentidos. Em inglês, no caso da lei, pelo contrário, há "law" e "right", Direito e faculdade.
2 comentários:
Como confirmado num dicionário actual, venho uma vez mais defender o uso do vocábulo estória, para referir-me a conto, ficção. Deste modo, escrever-se-á "estória da carochinha" e "estórias de encantar", como se constata em vários livros publicados.
História estará reservado para a disciplina, enquanto ciência.
É a evolução das palavras, derivado da comunicação através de uma língua viva.
Não vem no Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Texto Editora (1995), por exemplo. O que terá acontecido desde 1995 que tenha justificado a nova palavra? Só se vir essa evolução justificada posso ou não aderir, embora por enquanto não me pareça, pelos argumentos expostos. Não há nada na comunicação da língua viva que é a portuguesa que justifique duas palavras quando uma serve perfeitamente, sendo que a outra (estória) não tem nem História, nem estória. Se quer defender a sua ideia, vá mais fundo, não se fique pela presença num dicionário actual.
LC
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