sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O Chapéu de Três Bicos


Em 1874, Pedro Antonio de Alarcón (1833-1891), escritor espanhol natural de Granada, publicava a novela El Sombrero de Tres Picos. A acção é situada algures na Andaluzia, entre 1805 e 1808. Está-se numa Península Ibérica gerida segundo o Antigo Regime, "com a sua Inquisição e os seus frades, com a sua pitoresca desigualdade perante a lei, com os seus privilégios, foros e isenções pessoais, com a sua carência de toda a liberdade municipal ou política, [em que os cidadãos eram] governados simultaneamente por insignes bispos e poderosos corregedores" e pagavam "dízimos, primícias, alcavalas, subsídios, deixas e esmolas obrigatórias, rendas, capitações, tércias reais, impostos, frutos civis, e até cinquenta tributos mais" (pp.16-17). A história é precisamente sobre um velho e atrevido corregedor, cujos poderes servem mais os seus desejos pessoais e nem sempre inocentes, verdadeira síntese do Antigo Regime, embrulhado numa capa e coberto com um chapéu de três bicos (ou tricórnio), que na Península se usaram até bem dentro do século XIX. É pois sobre o corregedor e sobre como quis conquistar a Tia Frasquita, esposa do Tio Lucas, moleiro. E de como os alargados privilégios de uma classe podem não ser tudo na vida, porque nem tudo conseguem obter. A novela retrata uma época comum a Espanha e a Portugal, um tempo em que os povos peninsulares, ainda presos sob os costumes que vinham desde a Idade Média, olhavam com alguma esperança para os ideais do constitucionalismo que vinham do estrangeiro. É um modelo de sociedade que actualmente não conhecemos, pois as nossas são a natural evolução dos regimes liberais então implantados. É por isso que, com muito humor, António Pedro de Alarcón nos diz recordar da sua infância "ter visto pendurados num prego, único adorno da desmantelada parede da arruinada torre da casa que Sua Senhoria habitou (...), aquelas duas antiquadas jóias, aquela capa e aquele chapéu - o chapéu negro em cima, e a capa vermelha debaixo -, formando como que um espectro do absolutismo, uma espécie de mortalha do corregedor, uma caricatura retrospectiva do seu poder (...); uma espécie enfim de espanta-pássaros, que outrora fora espanta-homens e que hoje me assusta ter contribuído para escarnecer, passeando-a por aquela histórica cidade nos dias de Entrudo, no alto duma vassoura, ou servindo de ridículo disfarce ao idiota que mais fazia rir a plebe" (p.35). No entanto, sem mencionar mais o valioso testemunho, ainda que caricaturado, da sociedade do virar do século XVIII para o XIX, esta novela reforça a saudade do serão familiar ou, melhor ainda, comunitário, fazendo lembrar, por exemplo, o convívio que no campo se organizava nas desfolhadas. Isto porque quem conta verdadeiramente a história, inevitavelmente retocada por Alarcón, é o Tio Repela, "um rude pastor de cabras, que nunca saíra da escondida povoação em que nasceu (...). (...) Sempre que havia festa motivada por boda ou baptizado, ou por solene visita dos amos, tocava-lhe o fazer as palhaçadas, as pantominas, e recitar os romances e relações. E foi precisamente numa ocasião dessas (...) que ele houve por bem deslumbrar e embelezar certa noite a nossa inocência (relativa) com o conto em verso de «O Corregedor e a Moleira», ou seja de «O Moleiro e a Corregedora»" (p.7). Em todo o caso, uma história em que "não se aconselha ninguém a que seja mau; nem se ensina a sê-lo; nem fica sem castigo o que o é" (p.9), fazendo lembrar a moralidade d' Os Contos do Tio Joaquim, de Rodrigo Paganino, dos quais se falou já neste espaço. Uma excelente leitura, que prova que a literatura popular tem vivacidade suficiente para ombrear e, quantas vezes!, ultrapassar a arte erudita, frequentemente tão desfeada pela vaidade e presunção dos artistas.
Referência:
Pedro Antonio de Alarcón, O Chapéu de Três Bicos, Publicações Europa-América, 1973.

1 comentário:

Arsénio Mota disse...

Vale sempre a pena repegar nos livros que parecem «velhos», de ontem, para sentir como continuam afinal a ser de «hoje». Na verdade, a boa literatura, os bons autores, não envelhecem -- conseguem vencer os filtros do tempo.
Neste caso, para além dos méritos intrínsecos da obra, Alarcón permite-nos recordar (conforme o «post» bem e muito pertinentemente destaca) a comparação dos modelos da organização social de hoje com os de um passado ainda próximo. Eis uma lição de história amena e bastante impressiva, de agradecer!