domingo, 11 de maio de 2008

Uma História Oral do Nosso Tempo II

No Verão de 1917, folheando um livro de contos de W. Carleton num alfarrabista, Gould fixou uma frase de Yeats, que introduzia a obra com uma apresentação. Dizia Yeats que a História não era escrita nos locais a que normalmente se atribui a sua fonte principal, por serem aqueles onde se decide do destino de muitas pessoas - um parlamento, por exemplo. A História estava junto do povo, nas suas preocupações e nos seus diálogos. Foi nessa altura que Gould decidiu abandonar os seus hábitos para escrever a História Oral do Nosso Tempo. "Iria passar o resto da minha vida a andar pela cidade a ouvir as pessoas - às escondidas, se necessário - e passando a papel tudo o que dissessem e me parecesse revelador, por mais chato, idiota, ordinário ou obsceno que pudesse soar a outros. Estava já a ver como seria - longas conversas intermináveis e conversas curtas e vivas, conversas brilhantes e conversas parvas, insultos, frases batidas, pedaços de discussões, o balbuciar de bêbados e de loucos, os rogos dos mendigos e vagabundos, as propostas das prostitutas, o palavreado dos feirantes e dos vendedores ambulantes, os sermões dos pregadores de rua, gritos na noite, boatos incríveis, gritos do coração." (1) Para trabalhar numa tal obra, Gould decidiu deixar o emprego e reduzir as suas necessidades ao mínimo. Passaria agora a escutar a rua, os cafés, o metro, os albergues, todos os locais que pudessem produzir matéria digna de apontamento. "Aquilo que considerávamos ser história - reis e rainhas, tratados, invenções, grandes batalhas, decapitações, César, Napoleão, Pôncio Pilatos, Colombo, William Jennings Bryan - não passa de história formal e em grande parte falsa", diz Gould. "O que eu faço é registar a história informal da gente em mangas de camisa - o que têm para dizer sobre os empregos, amores, comidas, pândegas, apertos e penas". (2) "Num dos capítulos, «Os Homens Bons Estão a Morrer Como Moscas», Gould começa a escrever a biografia do dono de um restaurante e apostador em corridas de cavalos, chamado Side Bet Benny Altschuler, que morreu de tétano depois de se ter espetado na mão com um picador de gelo enferrujado; e ao fim de uns quantos parágrafos salta para a história que um marinheiro lhe contou sobre um grupo de leprosos que viu a beber, a dançar e a cantar numa Praia de Porto de Espanha, na Trindade; dali passa para uma história sobre uma manifestação em frente de um cinema de Boston em 1915 a protestar contra a exibição de «Nascimento de Uma Nação», durante a qual deu um pontapé a um polícia; dali passa para a descrição de uma visita que em tempos fez ao asilo de doentes mentais de Central Islip, em que uma mulher apontou para ele aos gritos de «Ali vai ele! Ladrão! Ladrão! Ali vai o homem que arrancou os meus gerânios e roubou a mula e a caleche da minha mãe»; dali passa para o relato que um vagabundo titubeante lhe fez de uma noite em que, sentado na soleira de uma porta de Great Jones Street, viu num vislumbre e sentiu as chamas ardentes do inferno e mais tarde nessa mesma noite viu duas sereias a brincar no East River mesmo a norte da lota de Fulton; dali passa para a explicação que lhe deu o Padre da Old St. Patrick's Cathedral, que fica na Mott Sreet, na parte mais antiga da Little Italy, sobre a razão por que tantas mulheres italianas vestem de preto («Estão de luto por Nosso Senhor»); para finalmente voltar a Side-Bet Benny, o dono do restaurante com tétano." (3) E talvez as conversas pudessem trazer consigo algo mais do que o que era dito. "Tudo dependia, dizia ele, da interpretação que se desse a tais conversas, o que não estava ao alcance de qualquer pessoa. «É verdade, tem toda a razão», disse uma vez a um detractor da História Oral. «São só coisas que ouvi dizer, mas talvez eu tenha alguma faculdade especial - talvez eu consiga compreender o significado daquilo que dizem as pessoas, talvez eu consiga ler o seu significado profundo. Pode ser que você, ao ouvir uma conversa entre dois velhotes num bar ou duas velhotas num banco de jardim, ache que são tretas sem nenhum interesse e que eu, ouvindo a mesma conversa, descubra nela um profundo sentido histórico.» «Um dia mais tarde», disse ele noutra ocasião, «pode ser que as pessoas leiam a História Oral de Joe Gould para ver onde é que falhámos, tal como hoje lemos "O Declínio e Queda" de Gibbon para ver porque caiu o Império Romano.» (4) Dizia às pessoas com quem falava que a História Oral já tinha onze vezes o tamanho da Bíblia, contando "nove milhões de palavras, escritas com todas as letras" (5) e que "era sem dúvida nehuma a mais longa obra literária inédita existente" (6). Joseph Gould foi boémio cerca de 40 anos, vivendo com o auxílio de amigos ou pessoas que se interessaram por ele e pelo seu curioso trabalho - como Mitchell -, acabando por falecer no Pilgrim State Hospital em 1957. Da História Oral do Nosso Tempo, o Armarium Libri quer reter a ideia de democratização - tanto quanto possível - do âmbito de trabalho dos historiadores. As Histórias gerais, nomeadamente as que servem de manuais escolares, são necessárias e têm a vantagem de introduzir o leitor num tema desconhecido. Todavia, para cumprir o seu objectivo, ficam-se pelo elementar dos factos, escolhendo os mais importantes e omitindo os que porventura o parecem menos; o mesmo acontece na omissão muitas figuras históricas que vão desaparecendo da memória colectiva. A Vida Quotidiana é um capítulo quase sempre sacrificado. Se na prática os costumes são naturalmente e obviamente inseparáveis das pessoas, a História - pretendendo descrever passado com rigor - não pode desconsiderar os temas da vida quotidiana, como se fossem menores. Se no estudo é possível proceder a tais omissões, a verdade é que estas são contra a natureza das vidas que intelectualmente se reconstroem - em qualquer classe, tempo e espaço.
(1) O Segredo de Joe Gould, Joseph Mitchell, Publicações D. Quixote, 2002, p.65.
(2) Idem, p.25.
(3) Idem, pp.27-28.
(4) Idem, p.45.
(5) Idem, p.24.
(6) Idem, p.45.

2 comentários:

João Lourenço Monteiro disse...

Este post, juntamente com o post da História Regional, têm um conteúdo extremamente importante, revelando a premência de investigar história para além daquela comumente estudada nas escolas e publicamente divulgada.
A frase que explica que o trabalho de Gould servirá para os nossos sucessores nos compreenderem, como nós necessitamos de escritos sobre a época romana para a compreender, resuma toda a importância deste estudo da "História Oral do Nosso Tempo".
Não só é relevante conhecer o que aconteceu como também o CONTEXTO em que aconteceu. O contexto é um dos importantes factores para se estudar/compreender história.
Estamos agradecidos a Gould pela utilidade do seu trabalho.

Luís Henriques disse...

A História é sempre interessante, mas se falar mais das pessoas, mais próxima fica dos que a lerem. Por isso, a vida quotidiana é tão importante.