Raul Brandão (1867-1930), natural da Foz do Douro, é um escritor difícil de classificar. Existe a legítima preocupação de classificar os artistas, pois facilita a organização e a divulgação dos conhecimentos que temos deles. Mas a Arte, como é livre, fica tão imprevisível que às vezes a classificação, como molde, não pode incluir toda a realidade. Raul Brandão, depois dos primeiros estudos, ingressou no Exército em 1888 e veio a reformar-se em major em 1912. Não tinha a vocação das armas, nem ao que parece, a disciplina requerida: as suas sensibilidade e inteligência ligavam-no à criação literária e jornalística, naturalmente avessas à mentalidade militar. Depois da reforma, passava muito tempo na sua quinta da Nespereira, em Guimarães, na companhia das árvores, que reverenciava, dos livros, que o inspiravam, e da esposa - D. Maria Angelina Brandão -, companhia de sempre. Vinha longamente a Lisboa, onde convivia com os artistas do seu tempo: Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Manuel Mendes... e viajava pelo seu País. Do que viu em alguns desses passeios, escreveu Os Pescadores, um conjunto de paisagens - tão vivas hoje à leitura, como quando Brandão as registou - e de tipos - os pescadores. Os Pescadores são breves retratos da vida na costa portuguesa no início do século XX, tal como Brandão a viu, rica em cores, em trabalho, em perseverança e em sofrimento; na Póvoa de Varzim, em Aveiro, na Nazaré, em Sesimbra, na Costa da Caparica e noutros locais onde havia quem do mar vivia.
"Foz do Douro, Dezembro - 1900
Manhã. O traço do Cabedelo separa o azul do rio do pó verde do mar. O hálito salgado que respiro renova todas as tintas e a Outra Banda, como um biombo verde, emerge no fundo do quadro. Azul - mais azul ainda... Vejo agora que a viração do norte arrasta para o largo os últimos farrapos de neblina, os barcos da sardinha que há mais de um mês largam todas as noites para a pesca. A safra da sardinha começa no mês dos Santos e acaba na Senhora da Guia. O batel, três homens e outras tantas redes. São às centenas, é uma frota que distingo pelas velas para lá do areal e que, no azul desmaiado e na névoa a dissolver-se, parecem suspensos no ar. Todas as tardes entram a barra uns atrás dos outros, em fila, para despejarem nas linguetas viscosas o peixe miúdo que salta aos montões nos cavernames. Duas, três horas... É o momento em que as mulheres saem das tocas: as Bexigas, a Papeira, a Maria da Viela, que passam a vida pelas estradas com a canastra à cabeça e o pé descalço; as matosinheiras, as de Afurada, quase sempre de luto, porque o mar lhes leva os homens e os filhos. Conheço-as todas de pequeno."
"Foz do Douro, Dezembro - 1900
Manhã. O traço do Cabedelo separa o azul do rio do pó verde do mar. O hálito salgado que respiro renova todas as tintas e a Outra Banda, como um biombo verde, emerge no fundo do quadro. Azul - mais azul ainda... Vejo agora que a viração do norte arrasta para o largo os últimos farrapos de neblina, os barcos da sardinha que há mais de um mês largam todas as noites para a pesca. A safra da sardinha começa no mês dos Santos e acaba na Senhora da Guia. O batel, três homens e outras tantas redes. São às centenas, é uma frota que distingo pelas velas para lá do areal e que, no azul desmaiado e na névoa a dissolver-se, parecem suspensos no ar. Todas as tardes entram a barra uns atrás dos outros, em fila, para despejarem nas linguetas viscosas o peixe miúdo que salta aos montões nos cavernames. Duas, três horas... É o momento em que as mulheres saem das tocas: as Bexigas, a Papeira, a Maria da Viela, que passam a vida pelas estradas com a canastra à cabeça e o pé descalço; as matosinheiras, as de Afurada, quase sempre de luto, porque o mar lhes leva os homens e os filhos. Conheço-as todas de pequeno."
Os Pescadores, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, p.65
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