sábado, 19 de abril de 2008

Voltaire, história das ciências e o ... LIDL?!

Num artigo intitulado “History of science and historical novels”(1), é comentada a relação existente entre história das ciências e romances ou novelas. O autor do artigo, refere que há cientistas que escrevem com base nas suas experiências em laboratório, designado de “Lablit”(1), e há escritores que olham para obras de historiadores da ciência como ponto de partida, ou inspiração, para romances de ficção. Na realidade há uma procura por romances históricos, mas por vezes faltam factos nestes.
Esta é uma oportunidade para os historiadores da ciência poderem abordar temas estudados, mas agora com recurso à ficção. “Por ser ficção permite explorar assuntos de moralidade e interpretação com uma liberdade normalmente negada aos historiadores”(1).
Em boa verdade, são vários os países com historiadores da ciência, que escrevem romances históricos, e Portugal não é excepção. Um bom exemplo da minha afirmação é a doutora Clara Pinto Correia com inúmeros trabalhos escritos, entre eles obras de divulgação científica e romances. Para o que pretendo expor vou referir duas das suas obras: “Os Mensageiros Secundários” e “A Primeira Luz da Madrugada”.
Em “Os Mensageiros Secundários”, cativante obra que nos prende do início ao fim, Clara Pinto Correia conta-nos a história através de dois narradores complementares, Chuck (personagem principal) e de uma misteriosa personagem que vamos conhecendo à medida que se desenrola o novelo da história. Como fio condutor temos uma investigadora portuguesa, a Ana Maria, que vive nos Estados Unidos da América e está a fazer uma pesquisa sobre descrições de monstros observados no Mundo com base em escritos portugueses do século XVIII. Entre diversos acontecimentos importantes que ocorreram em Portugal nesse século, podemos referir o colossal terramoto de 1755. Tal foi a magnitude deste sismo, que para além de Portugal foi sentido em muitos outros países, até no Norte da Europa. Este evento teve também particular destaque em “Cândido”, uma obra de François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778).
Foi a pesquisar para o seu estudo das teorias da reprodução, “O Ovário de Eva”, que a autora dos “mensageiros” encontrou numa biblioteca referências a relatos de visões de monstros escritos em português do século XVIII, em folhetos anónimos de dez páginas que costumavam ser avidamente lidos pelas massas.
Em “A Primeira Luz da Madrugada”, temos o prazer de reencontrar Ana Maria, que vê-se agora envolta no mito de Ashverus, o judeu errante. Ao ir passear o seu cão na praia encontra cinco indivíduos, aparentemente meros arrumadores do LIDL do Dafundo. Enquanto as personagens aguardam o há muito esperado Segundo Regresso, o leitor é convidado a conhecer a história deste mito e a reencontrar referências a personagens como o homúnculo de Paracelso, Matteo Ricci, Eleazar de Worms e até a criação do Golem de acordo com o misticismo judaico.
Está claro que no caso desta obra, a autora terá recorrido a informação recolhida para os seus trabalhos como “O Ovário de Eva” ou “O Mistério dos Mistérios”.
Tenho assim demonstrado, como de obras de história da ciência podem resultar bons romances com recurso a factos históricos, que contribuem para o enriquecimento cultural de quem tem o prazer de os ler.


(1) Golinsky, J.; “History of Science and Historical Novels”, Isis, 2007, 98:755-759
Bibliografia:

- Voltaire, “Cândido”, Abril Controljornal, Biblioteca Visão, 2000, tradução de Maria Archer

- Clara Pinto Correia, “O Mistério dos Mistérios – Uma história breve das teorias de reprodução animal”, Relógio D’Água Editores, 1999

- Clara Pinto Correia, “Os Mensageiros Secundários”, Relógio D’Água Editores, 2000

- Clara Pinto Correia, “A Primeira Luz da Madrugada”, Oficina do Livro, 2006

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